Acerca de
Sobre habitar um filme
Vermelho Bruto (Amanda Devulsky, 2022, DF)
por Pedro Henrique Ferreira
O esforço monumental que Vermelho Bruto faz passa pela articulação entre duas camadas discursivas diferentes: o registro da vida cotidiana de quatro mulheres que foram mães adolescentes, oriundas de diferentes camadas sociais e durante mais ou menos o mesmo período, e um retrato nublado, que brota das imagens como rasuras que se constroem ao longo do filme, do apagamento do lugar do feminino na Nova República do Brasil. Esta associação é bem indireta; surge no emaranhado de imagens que, primeiro, não revelam nem quem as produziu (as mulheres pouco aparecem, no mais das vezes, a imagem é a dos seus olhares, o que veem), nem de quem é a voz em off da narração que ouvimos (os relatos das quatro têm aspectos semelhantes e parece haver um esforço deliberado em esconder quem os emite), nem a época exata onde se passam (imagens de arquivo do passado se misturam a momentos recém-filmados do presente). A idéia do longa-metragem de Amanda Devulsky parece ser produzir uma sensação de indiscernibilidade, inconstância, mas também de repetição, de que nada mudou exatamente e estamos aprisionados a um eterno retorno, um nimbo de imutabilidade. Uma fala parece que repete ou completa a outra, mas já não sabíamos de onde ela vinha, e seguimos sem saber - ela está associada, num notável trabalho de montagem disjuntiva, a algo que não necessariamente seja condizente - os momentos mais palpáveis (uma cena sobre trabalho ou outra com a família) se alternam com uma série de explorações formais do material. Que os registros se misturem, e as imagens funcionem como um enxoval centrípeto e rizomático, uma espécie de torvelinho de células no qual mergulhamos para pescar aqui e acolá o sentido de cada uma, só contribui para a sensação mista de sermos ao mesmo tempo enclausurados enquanto estendemos o braço para ver o que se pode segurar do fluxo. Isso fortalece o discurso de apagamento do feminino e a sensação de bloqueio do seu lugar no país das últimas décadas.
Talvez o maior paradoxo de Vermelho Bruto é que, embora ele se apresente como uma experiência de fruição fundamentalmente temporal, no qual se faz necessário um certo escoamento do tempo para que possamos acessar a força dos relatos que ele porta, para que possamos compreender a operação lógica que movimenta a ele e seus atores/personagens, para que, enfim, seu motivo venha à luz ao espectador, ele é um filme fundamentalmente espacializado: não o experienciamos como uma construção que nos movimenta nem em linha reta (uma narrativa que vai de um ponto a outro), nem em espiral, onde há um núcleo propulsor centrífugo (e as imagens brotam deste centro, como em Limite), bifurcada, em abismo ou seja lá o que for; ao contrário, ele se apresenta como uma estrutura inerte, um edifício de database ou instalação - biblioteca universal borgiana - em que é preciso habitar durante certo tempo para compreendê-lo, permanecer dentro dele tempo o suficiente para usufrui-lo e então abandoná-lo depois que o acorde que o mobiliza já ecoou o bastante, ou porque o estabelecimento fechou mais cedo. É um filme que dura entre três e quatro horas, mas poderia durar apenas uma e meia, ou talvez dois ou três dias - no máximo, ou mínimo, uma semana, dependendo de quanto demora para que você, o inquilino, pense ser o suficiente para acessar seu bálsamo. E, no entanto, ao mesmo tempo, Vermelho Bruto não é uma instalação artística dentro de um museu: é uma experiência cinematográfica que se desenrola como um devir em linha reta, na sala de cinema.
Nos seus piores momentos, Vermelho Bruto apela demais para a transformação do arquivo em textura como forma de climatizador, alternando este estado bruto e carnal da imagem com um outro, encapsulado de sentido, que parece ser onde o filme verdadeiramente acontece. Então, se surge uma cena terna na qual acompanhamos o ponto de vista de uma mulher que, nas solidões das ruas, chega em casa após um árduo dia de trabalho, ou outra, quando uma criança sente repulsa e medo dos resultados da eleição e a mãe a consola (dentre outros incríveis achados do longa-metragem de Amanda Devulsky), o problema é que rapidamente a associação que ela poderia fazer com uma outra cena da mesma espécie é entrecortada por uma série de momentos de ‘mood’ onde uma trilha sonora de harmonia tensionada se preenche pela exploração formal do tecido material que o arquivo possui. Vermelho Bruto joga com a nossa incompreensão para transformar o que, em outro plano do próprio filme, é retórico, histórico e emocionalmente potente, em uma batalha entre obra de arte e seu material intrínseco, pávido, de registro bruto. É uma forma de fazer parecer que o que é dito é mais complexo, menos amarrado, mais profundo e sentimental, porque precisamos alternar o modo da fruição de hora em hora, embora não o seja necessariamente e de verdade (ou melhor, que não seja isto que torne Vermelho Bruto num grande filme). É uma forma de recorrer ao afeto como mobilizador geral da montagem, quando o longa-metragem e seu material já são mais que o suficiente. O tiro sai um tanto pela culatra, sobretudo quando somos obrigados a aguentá-lo por bastante tempo.
Só que, na verdade, nem isso importa, porque Vermelho Bruto sobrevive, e bem demais, das suas cenas mais articuladas no âmbito do discurso; dos momentos em que a verdade histórica do apagamento feminino ganha materialidade, torna-se fato prosaico na vida destas quatro mulheres, e o próprio mundo dá verdade à tese, na mesma medida em que torna visível o que se põe à prova. O filme e o material levantado, bem como o dispositivo armadurado e o resultado dele, já geram força o suficiente - uma potência inerente a eles - para que o filme não precise recorrer aos artifícios da videoarte nem do jogo de manipulação textural. O poder das imagens são autossuficientes e, se há um desejo expressivo em recorrer a um trabalho de construção de espera e de esmerada investigação formal, a verdade é que estas são mais facilmente esquecíveis que um choro de uma criança ao saber da eleição de Jair Bolsonaro ou simplesmente de uma rua em Brasília vazia. Neste sentido, Vermelho Bruto não precisaria se esconder ou se disfarçar de nada, nem emular a profundidade que os seus melhores momentos já têm; ele já sobrevive muito bem.
Janeiro, 2023