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A privatização do trauma
no cinema de horror contemporâneo

por Marcelo Miranda

        O Halloween de David Gordon Green, lançado em 2018, não inventou o trauma como catalisador do horror no cinema, nem mesmo no cinema contemporâneo, mas alguma coisa acontece desde então. Houve uns filmes pouco anteriores que trataram das mazelas doloridas de grandes baques físicos ou psicológicos como estopim dos enredos e alegorias do insólito, como Babadook (Jennifer Kent, 2014) e Lugares Escuros (Giles Paquet-Brenner, 2015), e ainda uma espécie de transição em Sombras da Vida (David Lowery, 2017), no qual o traumatizado é o próprio fantasma a assombrar uma casa. Mas o sucesso de bilheteria e crítica da retomada de Halloween, com uma Laurie Strode completamente tomada pelo impacto da noite infernal mostrada no filme original de John Carpenter em 1978, acionou algum alerta amarelo nos produtores de horror em Hollywood para o que desde então se tornou praticamente uma commoditie quando o gênero tenta encontrar respeito e legitimação entre espectadores menos calejados: o trauma como regime de ação dramática. 

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       Se o trauma é, na concepção da filósofa Jeanne Marie Gagnebin, “ferida aberta na alma, ou no corpo, por acontecimentos violentos, recalcados ou não, mas que não conseguem ser elaborados simbolicamente, em particular pela forma de palavra, pelo sujeito”, então o cinema de horror, com suas possibilidades de imaginários e alegorias, torna-se naturalmente um caminho para a expressão e expurgo desse sentimento. Não é que os realizadores estejam necessariamente usando os filmes para tratarem seus próprios traumas (como, muitas vezes, autores literários fazem com maior frequência); o que se percebe é que enredos ficcionais iniciados por traumas passam a se ancorar no sentimento para agregar sofrimento aos personagens protagonistas, inseri-los em situações de perigo que ilustram as angústias que já sentem internamente e retirá-los desses perigos, seja por finais menos ou mais felizes. O que parece estar em jogo, em todos eles, é a conexão emocional que se quer estabelecer entre personagem e espectador: os filmes convidam o público a compartilhar a dor e, a partir disso, afinar a relação entre quem vê a história de fora e quem a vive lá dentro, causando ao mesmo tempo inquietação e reconhecimento. 

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         Halloween em 2018 é sintomático nesse sentido porque faz de Laurie Strode não mais uma pessoa entre tantas que sobreviveram ao massacre perpetrado por Michael Myers em 1978, e sim a grande personagem dessa história iniciada 40 anos antes; não mais uma integrante da comunidade de Haddonfield atacada pelo maníaco, e sim a anti-heroína que escapou da faca do assassino, isolou-se num bunker doméstico, treinou e armou-se para enfrentar o antagonista e se tornar arauta do apocalipse na tentativa de alertar a família de que o Mal ainda vai voltar. O minimalismo da perseguição de Myers em 1978 dá lugar ao maximalismo das reações aos seus ataques em 2018. Só Laurie reage ao trauma porque só ela vivenciou os acontecimentos, e tudo que importa é proteger a família. O novo Halloween promove o que vem se tornando uma convenção de filmes similares: a privatização do trauma. 

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          Essa privatização se conecta a um conceito também sempre perseguido para legitimar alguns filmes de horror de mais repercussão e bilheteria: a empatia. Em tempos de alertas de gatilho e cancelamentos no Twitter, trabalhar o drama para que o espectador entenda o sentimento dos personagens é muito mais positivo na loteria das redes sociais do que filmes que tenham figuras amorais ou abordagens menos emocionais ou menos preocupadas com o bem-estar de quem assiste. A commoditie do trauma só se justifica se ela servir para a aproximação incontornável dos dramas, tendo por objetivo e eventual consequência o pareamento entre a ficção (do filme) e a realidade (de quem está vendo). Quanto mais compreensíveis forem as angústias dos personagens, quanto mais comoventes suas dificuldades e quanto mais catárticos seus expurgos, mais a conexão se forma e mais emocional tende a ser a resposta ao filme. O individualismo, então, é importante nesse processo, pois, por mais que determinado espectador tenha suas preocupações com o mundo e com o coletivo, ali na sala de cinema (ou na tela da TV ou na janela do streaming) esse espectador é só e somente só ele, seus sentimentos os únicos ali em ebulição. Laurie Strode é uma mulher traumatizada e cabem a ela e a quem a assiste vencer esse trauma, como se a nossa vida dependesse do  que vai acontecer na vida dela. 

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          Que se veja Midsommar – O Mal não Espera a Noite (Ari Aster, 2018). Dani é a garota traumatizada pela perda trágica da família e carrega dor e culpa na viagem que faz com o namorado e amigos para uma comunidade no norte da Suécia. Todo o estranhamento do filme se dá no choque cultural entre a turma de Dani e os moradores de Harga, com consequências violentas para os dois lados. Mas é nos traumas de Dani que o filme se fixa, e é a ela que se busca o ponto de conexão e empatia. Só assim o desfecho funciona: na separação entre o trauma de Dani e o choque cultural. Já no final, Midsommar na verdade junta as duas coisas para dar conta de expiar o trauma e os conflitos de Dani na cerimônia final de sacrifício humano. O último plano é o olhar frontal da protagonista à câmera e o sorriso de satisfação de uma vingança que ela não pediu, mas a cultura de Harga lhe proporcionou. O sorriso é um chamamento à cumplicidade, é a projeção de Dani para fora da tela, a convocar o espectador a estar com ela naquele momento e a compartilhar suas escolhas, justificadas pelo trauma devidamente privatizado. 

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          O processo de expurgo do trauma é similar em O Homem Invisível (Leigh Whannell, 2020), ainda que desde o princípio esteja conectado à intimidade da personagem. Não se trata, aqui, de um único acontecimento a moldar toda a estrutura dramática posterior, e sim um contexto cultural de opressão masculina a provocar a fissura traumática em Cecilia. O filme responde a esse contexto, primeiro levando a mulher ao grau máximo de sofrimento e dor para, então, deixar que ela se restaure e chegue ao fim devidamente vingada e expiada a partir de suas próprias ações. Também aqui o jogo de equilíbrios entre personagem ficcional e espectador real depende do quanto de empatia se coloca em Cecilia, e por isso O Homem Invisível tem um ritmo menos frenético, a permitir que sejam compartilhados os sentimentos dela. 

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          Esse certo padrão dos filmes de horror sobre trauma nos últimos seis ou sete anos – ritmo mais cadenciado, personagens com dramas interiores mais carregados, roteiros atentos a lances potencialmente empáticos para fisgarem o emocional do público – gerou conceitos como o famigerado “pós-horror”, cunhado pelo jornalista inglês Steve Rose em 2017 para tratar de obras do gênero supostamente mais reflexivas e menos devedoras de elementos identificados por ele como característicos e tradicionais do gênero. O que me parece mais presente nessa relação e que Rose pode não ter captado é realmente a vinculação dos dramas íntimos aos elementos insólitos de forma a se chegar na empatia. O trauma, essa “ferida na memória”, como define Márcio Seligmann-Silva, surge como elemento oportuno e ideal num cenário cultural em que se busca fazer dos filmes de horror algo que seja “pós”, que possa se justificar para além do gênero e que comercialmente fure a bolha de ocasionais recusas de quem ainda acredita que horror é sinônimo de medo ou violência. Se você embala o produto numa casca mais formosa e brilhosa, espirra algum perfume para disfarçar qualquer mau cheiro e vende como novidade, a chance de sucesso tende a ser maior. Está aí a produtora A24, volta e meia acusada de ser uma espécie de Partido Novo do cinema de horror. 

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          Nem sempre funciona, é claro. Men – Faces do Medo (Alex Garland, 2022) foi um fracasso de crítica e público com suas metáforas sobre masculinidade tóxica e sofrimentos femininos numa sociedade patriarcal, e nem a privatização do trauma serviu para que o filme tivesse alguma repercussão mais positiva. Talvez o obstáculo maior tenha sido a negação da empatia, quando, a partir de determinado momento, o excesso de alegorias, símbolos e delírios surrealistas desvincula a relação até então estabelecida entre a personagem Harper e o espectador. É mais fácil aceitar rituais pagãos na Suécia ou homens trajando tecnologias de invisibilidade se o filme coloca o público no mesmo patamar que as personagens, mas isso não vale tanto se o que a personagem vê são imagens de difícil codificação (um homem parindo a si mesmo infinitamente, por exemplo). 

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          A desconexão do trauma ocasionando a dificuldade de empatia acontece também em O Massacre da Serra Elétrica: O Retorno de Leatherface (David Blue Garcia, 2022), que tenta princípios similares ao Halloween de 2018, mas nunca encontra por onde exatamente abrir caminho rumo ao emocional que porventura fizesse efeito para além do choque e da nostalgia. Na verdade, essa entrada mais recente na franquia iniciada em 1974 tem por maior dificuldade a indefinição entre ser um filme de sanguinolência com discurso social (crítica ao empreendedorismo e à gentrificação, grosso modo) ou um filme de enfrentamento do trauma (na reaparição de Sally, a sobrevivente, agora uma senhora tão casca-grossa quanto a Laurie do século 21). Ensaia-se uma jovem personagem traumatizada por ter sobrevivido a um tiroteio na escola, mas é tudo tão diluído na bagunça geral do filme que não sobra muito para se conectar a mais nada. 

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          Ou seja, a  privatização do trauma não é necessariamente garantia de sucesso e prestígio, mas certamente sua presença se amplifica em anos recentes no cinema de horror justamente pela tendência a ser um ponto de conexão quase imediato na aproximação com os filmes. É um commoditie tão em alta que chega a ser literalmente tematizado em Sorria (Parker Finn, 2022), no qual a entidade que atormenta a personagem se alimenta do trauma das pessoas que ela possui. Na ânsia por não transmitir o mal, Rose – ela mesma traumatizada pelo suicídio da mãe – tenta se isolar, mas é procurada pelo antigo namorado, que naturalmente pega a maldição. Mais explícito que Sorria não há: é impossível escapar do trauma, logo, é impossível se ausentar do eterno retorno à “escavação das memórias” de que fala Seligmann-Silva. 

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    A gênese do trauma, segundo Freud, é compulsão da repetição, ou seja, ele se estabelece num ir e vir mental para não mais sair enquanto a pessoa não superá-lo. Por se tratar de uma fissura na memória, essa repetição se dá pela constante rememoração do choque e pela reconfiguração do sofrimento. Supõe-se daí a percepção contemporânea de produtores e diretores de que o cinema de horror pode se aproveitar disso tanto quanto outros gêneros, mais ainda quando os sucessos aparecem constantemente. O trauma seguirá mais e mais presente, bem como sua individuação/privatização, algo bastante a calhar em tempos nos quais o senso de coletivo vive uma crise mundial sem precedentes, agravada pela pandemia ainda num horizonte não tão distanciado. O show do trauma vai continuar.

 

 

Outubro, 2022

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