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Acerca de

Ressonâncias

Memória (Apichatpong Weerasethakul, 2021, Tailândia / Colômbia)

por Pedro Henrique Ferreira

"Ontem caiu uma pedra lá fora

Que o lançador só vai jogar agora

É dele transformar, é dele pôr para andar"

Agabê, Douglas Germano 

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          Primeiro, um quarto escuro e uma cortina fechada. Tudo está estático. O tempo passa enquanto olhamos este afresco soturno de natureza morta, que mostra também uma mancha preta indistinguível rascunhada no canto inferior da tela. Um som repentino, alto e indistinguível, interrompe a contemplação, e a mancha se move; era uma mulher dormindo, que acabou de acordar. Embora ainda não soubéssemos, estávamos vendo ela dormir. Depois, passamos a um estacionamento à noite. Um lento travelling in, aparentemente desmotivado, mostra os carros parados. Agora são eles que dormem. O alarme dispara e um deles ‘acorda’. Em seguida, as demais máquinas também despertam. Tão inexplicável quanto o movimento de câmera foi aquilo que motivou os alarmes dispararem. Foi um fantasma invisível que passou, ou foi precisamente este movimento, indicando a nossa própria presença como observador? Tudo se silencia quando a câmera se fixa novamente, e então, nos achamos em outro quarto, só que agora, em um hospital. Já é manhã, as cortinas estão abertas, e a mesma mulher de antes senta agora numa cadeira à frente do leito de outra, que dorme. Como nós antes fazíamos com a própria, ela agora observa o sono da irmã, um pouco atrapalhada pelo celular (uma menção metalinguistica ao espectador?). “É tão bom assistir você dormir”, comenta com a recém desperta. Este preâmbulo de três cenas fará remissão também a uma outra futura cena, quando a mesma Jessica (Tilda Swinton) vê a versão mais velha de Hernán (Elkin Diáz) dormir ao lado do riacho - e nós com ela - durante quase dez minutos do longa-metragem. 

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          Dormir é uma metáfora forte para o cinema. Não falo dormir de verdade, na sala de exibição, é claro. Digo, a faca-de-dois-gumes que é o místico sono da imersão, e nem é à toa que um dos lemas do modernismo político era fazer despertar o espectador do sonífero da diegese. Aqui, porém, trata-se de estar acordado para ver o sono do outro. Através de sofisticados mecanismos observacionais de decupagem, estas cenas põe em jogo a relação espectatorial com a espera e presença que é assistir alguém dormir. É claro que aqui Apichatpong Weerasethakul evoca o Sleep (1966) de Warhol, um dos seus artistas preferidos, e suas experiências temporais mais radicais. Mas uma outra sincronia, a estranha sensação de deja vu, trás à recordação a observação austera de um outro sono, muito mais silencioso - ou melhor, fundamentalmente silencioso - que é o da esposa sonambúlica do protagonista de Nosferatu. Nos seus sonhos ou visões, surgem as ameaças telepáticas do vampiro; este que desde a publicação de Bram Stoker é metáfora narrativa para o espectral das próprias condições de reprodução técnica. Ele se comunicava e intervinha a quilômetros e quilômetros de distância, impondo sua vontade nos que dormem do mesmo jeito que a arte cinematográfica, no início do século XX, impunha suas imagens sobre as massas equidistantes. Esta velocidade era tudo, e por isto que o burguês da imobiliária jamais, em hipótese alguma, chegaria antes do vampiro, que pode tudo em um único corte. O lema do Murnau sempre foi o do ‘tarde demais’, e o botânico naquela cidadezinha de Nosferatu já dissera antes para o protagonista, em uma cartela en passant, que não adianta ter pressa, pois é impossível fugir do destino. Aí é que está: o grande tema da obra trágica de Murnau foi este chamado místico, quase carontiano, das imagens que agem mais rápido que os pés; a influência telepática delas que faz transfigurar quem a vê antes que seja possível impedi-la, e que justamente por isto, vira a figuração do destino - no navio de Tabu ou na tempestade de Aurora, por exemplo - a mesma incapacidade de fugir do destino que levou o próprio diretor à sua morte prematura. Mas por que a memória do maior cineasta do cinema silencioso ao assistir um outro que, à cada filme, garante seu lugar no panteão dos maiores deste milênio? Porque a convocação que ali no início do século XX era uma imagem que não deixava uma sonâmbula dormir em paz, aqui no XXI se transformou num som. 

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          Memória é todo permeado por um impulso 'sonofílico', só que a graça toda é que esta palavra pode ter um duplo sentido involuntário (visto que a etimologia de ambas é bem diversa) como referência ao ato de dormir ou à sonoridade. A protagonista do filme sofre de insônia - veremos sua expressão degradar cada vez mais ao longo do filme - e uma das razões é porque ouve este som indistinto com bastante frequência. Primeiro, este som é experienciado como uma  espécie de doença, invadindo o seu dia-a-dia e atrapalhando-a de estabelecer relações básicas.  Não é um simples e eventual elemento fantástico, qual a descrição mais habitual que a crítica faz da obra de Apichatpong quando ele lança mão desta espécie de recurso. A graça do fantástico é que ele surge como uma espécie de intromissão no registro cotidiano que o diretor instaura enquanto filma sua protagonista zanzando por Medelin, à espera da cura de sua irmã, também doente, mas de outra forma. É sim uma espécie de rasgo mágico no velcro do real, mas ele acontece como um chamado desorientador de algo que co-existe a este mundo, mas que é nele anestesiado, lobomotizado, reprimido; vide a cena em que a médica, religiosa e fã de Salvador Dali, lhe recusa prescrever Xanax para que a paciente não perca a capacidade de enxergar a beleza e tristeza deste mundo. As figurações de Apichatpong são tão 'feitiços que se voltam contra o feiticeiro’ quanto as de Buñuel ou Artaud, mas elas não nascem de desejos sexuais ou inconscientes sociais, não são representações escandalosas que chocam. É um simples som. Um chamado bem material do além.

 

          Mas de onde vem o som, que não faz mais que pavimentar o caminho para um futuro encontro? Esta voz de outro, que adianta o relato porvir? Em princípio, isto parece não importar tanto para a protagonista quanto encontrar um jeito de eliminá-lo e poder voltar a dormir. Ela procura lhe dar forma com o auxílio de um jovem técnico de som, Hernán (Juan Pablo Urrego), na longa cena onde acontece o trabalho de modulação da sonoridade. Esta cena é importante; ou melhor, o encontro com os dois Hernáns são importantes, pois enquanto o primeiro e mais jovem ajuda a materializar digitalmente uma coisa mental e subjetiva, o segundo, mais velho, a ajuda a descobrir sua origem descrevendo-a como a captação de antena de uma voz liberta do mundo - e não à toa, a metáfora para isto, no filme, será a de uma tecnologia sonora que não é digital, mas de reprodução mecânica, a rádio. As duas técnicas-mágicas postas lado-a-lado, comparativamente, como não raro Apichatpong  fez.

 

         Este ‘cotidiano' da vigília simples, despido dos elementos fantásticos, que ela, inicialmente, luta por manter a todo custo contra o som que lhe atormenta tem um nome: o realismo. Não apenas o realismo como indicial da imagem - aquele que no alvorecer da era moderna fez crer que o campo do visível era prova do mundo -, mas ele como tradição artística naturalista, de origem europeia, firmado na arte e literatura do século XIX. Jéssica é uma britânica que vive temporariamente na Colômbia, uma européia em um país latino-americano ou de terceiro mundo, tão culpada por habitar um mundo que colonizou quanto a Huppert de Minha Terra, Africa (2009), os portugueses de Cartas da Guerra (2016), e, inúmeras figuras (não há novidade) que vemos no cinema contemporâneo. O cotidiano burguês é interrompido pela estranheza fantasmática em todos os cantos, dos art-house de Haneke até os de Rojas/Dutra. Os dias decorrem pacificiamente, mas de repente, não se sabe por quê, esta-se dormindo mal. É forçoso dizer que, na Colômbia, Jéssica viu os efeitos da colonização e sofreu com a culpa que cabe a seus ancestrais. Não é o caso; nada nos diz isto. Mas o estranho som que interrompe a tranquilidade especular do real - este fragmento de um relato secreto que ela, como uma antena, subitamente captou e a cujo destino, como uma sonâmbula, será conduzida -, lhe avisa que, nas imagens, residem muitos e muitos outros mundos possíveis, muitos relatos que podem ou não vir-a-ser, e também os que sobrevivem à morte e se tornam fantasmas discretos. Relatos que foram reprimidos em nome da matemática da unidade; este princípio do cálculo que fez o Estado-Nação burguês poder manter a condição de submissão de uma série de povos diferentes, sob a égide do ‘mundo comum’ - e neste sentido, tanto a montagem paralela de Dickens em Um Conto de Duas Cidades quanto a de Griffith em Órfãos da Tempestade (1921), duas esfinges do realismo, não fizeram mais que garantir o sonífero e restaurar, na multiplicidade frenética e na fragmentação da experiência imposta pela modernidade industrial da época, o renovado fim da diferença para fazer do cinema a grande revolução passiva das artes.

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          Um som precisará surgir para atrapalhar o sono. Mas neste primeiro plano de Memória, quando ele já surge, é ele que põe a imagem estática em movimento; e põe, portanto a cena ‘em ação'. O som representa a possibilidade de transgressão em um século confinado pelo excesso de imagens, a era do oculocentrismo que mercantilizou tanto o campo visível com a moeda do real que tornou toda imagem gasta e fez os olhos-de-lince ficarem fotofóbicos. Que a audição ganha preponderância no cinema contemporâneo é repetir apenas mais um chavão, mas o  grande mérito de Memória - como frequentemente é com os artistas mais brilhantes de seu tempo - é colocar os pontos nos ‘is' e ir ao cerne da questão, dar-lhes a ‘clareza' da palavra final. O som que Jéssica ouve, seu irresistível chamado que, inicialmente, não parece muito mais que um incômodo, é o que a levará eventualmente, ao movimento de distensão narrativa tão habitual nos filmes de Apichatpong Weerasethakul. São nestas repentinas mutações geográficas e temporais da trama que o diretor impõe sua visão de mundo. Como fizera em muitos dos seus longas-metragens anteriores, o diretor tailandês fatia sua narrativa em dois, ora deslocando-a de forma mais radical (Mal dos Trópicos, Síndromes e um Século, etc.), ora lentamente conduzindo seus personagens a outras situações, e se aproveitando da repartição para produzir relações de espelhamento combinatório entre o que se viu a cada momento. Como em Eternamente Sua (2002), aqui saímos do agito da metrópole para uma espécie de ‘desvio ao interior’, onde a natureza se faz mais presente, mas não ao ponto dela representar um choque com o que víamos antes (pois meras oposições entre natureza e civilização, campo e cidade, modernidade e tradição, inexistem na visão holística de mundo de Apichatpong - no ‘moderno' a natureza está contida dentro de um jardim de inverno numa galeria, no ‘antigo’, a nave alienígena brota da selva profunda). 

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      O que é experienciado como fruto da depressão e ansiedade, na primeira metade de Memória encontra sinergia e maravilhamento na segunda. O reencontro com o desaparecido Hernán, agora mais velho, aquele alienígena que não sonha (pois nada reprime) a conduzirá a perscrutar o mundo e as coisas de uma outra forma, na mesma medida em que a cadência já vagarosa, o tempo leve e pacífico, e a misteriosa dramaturgia que conviviam com uma dinâmica mais naturalista na primeira parte aqui explodem, numa das mais impressionantes conduções rítmicas e cênicas jamais vistas na história do cinema. O riacho flui, as árvores chacoalham ao som dos grilos. Duas pessoas quaisquer da cidadezinha, paradas na porta de uma tenda, onde há uma penca de bananas penduradas, olham para o nada. Um soldado espera. Uma nave alienígena levanta voa e desaparece. O tempo flui com sua tranquilidade teogônica. Se as roupas no varal de Ozu nos dizem, “veja bem, o mundo e o tempo seguem adiante, sem se preocupar muito com o seu drama pessoal”, as nuvens escuras que tremem no céu de Memória nos contam  menos de um Deus apático e mais de um tempo politeísta, libertador, que tudo permite e tudo abraça, pois o seu mundo é o mundo sincrônico de muitos mundos - onde estátuas, crânios e pedras tem memórias, discurso e universos possíveis contidos em suas próprias interioridade  assim como os fantasmas, os carros e as aeronaves. Não há forma realista unívoca que resista; ou melhor, realismo é ver tudo. O grande mérito do diretor tailandês é nos fazer simular de maneira tão intensa esta mesma percepção. Basta não estar dormindo para ver. É o que o baque seco de uma bola caindo veio mostrar a Jéssica. Veio anunciar-lhe, cair-lhe ao colo antes mesmo que a pedra pudesse ser lançada. 

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Outubro, 2022

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