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O diabo está na rua

Medusa (Anita Rocha da Silveira, 2022, Brasil)

por Rodrigo de Abreu Pinto

       O acúmulo de trabalhos e prêmios gabarita Anita Rocha da Silveira como uma expoente do cinema independente brasileiro que começou a fazer filmes na década passada. Nos casos mais promissores, são filmes e diretores que seduziram audiências internacionais por meio de uma arte esteticamente arrojada e às vezes mais, às vezes menos, interessada em discutir as questões do país. Ao contrário das gerações anteriores, esta desobrigação de representar o “Brasil” é vivido como uma libertação. O que só torna ainda mais interessante quando alguém como Anita se propõe a discuti-lo no que há de mais atual.

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         Medusa (2021) se dedica do início ao fim à jornada de Mariana (Mari Oliveira). A protagonista é uma das integrantes do “Preciosas do Altar”, o coral evangélico que canta hinos sobre a moral e os bons costumes durante o dia, e à noite persegue e espanca pecadoras que desvirtuam os valores do mundo. O enredo é só à primeira vista tão distópico assim, já que condiz com a realidade brasileira em que o imaginário neopentecostal está associado ao milicianismo, e não menos ao empreendedorismo individual. O Pastor Guilherme (Thiago Fragoso), é candidato ao Senado, enquanto a melhor amiga de Mariana, Michele (Lara Tremoroux), é uma blogueira que publica vídeos para mulheres recatadas, do lar, porém vaidosas. A narrativa ganha contornos à medida que Mariana se interessa pela história de Melissa (Bruna Linzmeyer), uma pecadora que desapareceu após ter o rosto queimado em punição ao seu comportamento. As descobertas sobre a personalidade transgressora de Melissa interagem com decepções que Mariana acumula com a igreja e o pastor, e assim a protagonista se transforma, paulatinamente, ao longo do filme.

 

          Assim, Medusa é um drama sobre a inadequação e a luta pela afirmação de si. Mariana se diz possuída pelo demônio e vive isso entre o terror e o gozo. O seu arco narrativo é tanto um libelo sobre a libertação feminina, quanto uma crítica ao discurso religioso. Indo por aí, Medusa atrela a religião aos seus emblemas mais inquisitoriais – a repressão, o moralismo, o apagamento de si. Se as “Precisas do Altar” jogavam pedras nas pecadoras, a religião pelas mãos do filme se torna a própria Jeni. 

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        Em Medusa, é patente que a única dimensão subjetiva que motiva a revolução de Mariana seja o ódio religioso, ao passo que outras questões (como a posição de classe ou raça de Mariana) não alcançam dramaticidade ou tempo de cena suficientes para se incorporar em linhas de força do filme. Mesmo o impacto da descoberta da violência doméstica contra Michele (passada mais da metade do filme em que a blogueira exibia uma vida perfeita acima de qualquer suspeita), é soterrado pelas cenas que buscam dar credibilidade ao arco dramático da protagonista em luta contra o mal. Sendo que o diabo não está só no mundinho da personagem, mas também na rua, no meio do redemoinho. 

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          Anita ignora isso e reproduz o imaginário autorreferente de seus trabalhos anteriores, embora lá o resultado não chegasse a ser tão controvertido. Em seus curtas, a matéria do mundo era achatada em seus efeitos, mas vale a máxima de Cortazar para quem “o conto é uma luta que se ganha por nocaute, e o romance por pontos”. Em Handebol (2010), os personagens e demais formas do filme são infectados por uma energia indecifrável que progressivamente subtrai o lugar seguro do espectador (para onde olhar? como olhar?); em Mortos-Vivos (2012), há um circuito do qual todos acontecimentos parecem fazer numa galopante coreografia de encontros e desencontros. São curtas que caminham rápido para o fim do único mundo que conhecem – o próprio – mas cuja caminhada é desconcertante. Sobressai a criatividade formal e plástica da diretora que, sem interesse na significação do mundo, produziu curtas com força de punch rara no cinema brasileiro. Os dramas do grupo de amigas de Mate-me Por Favor (2015) tampouco induzem maiores reflexões sociais. Mas sendo um filme fundado em clichês do cinema de gênero hollywoodiano e do imaginário teen da televisão brasileira, a alienação é um limite, porém não um vício de caráter.

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         Embora Medusa recupere elementos presentes no longa anterior (como o fascínio pela violência e a religião), Anita, pela primeira vez, se lança ao desafio de emitir um discurso sobre o mundo que necessariamente transborda o seu imaginário afetivo carioca. Descobre-se, assim, que uma coisa é retrabalhar elementos vindos diretamente dos setores industrializados e fetichizados da sociedade, outra coisa é representar a religião de mais de 30% dos brasileiros, prestes a se tornar a maior religião do país, superando a católica. Medusa é mais arriscado que Mate-me Por Favor, e aqui se torna ainda mais evidente a habilidade incomum de Anita em imprimir a particularidade de seu olhar em cada corte, duração e variação de pontos de vista. Mas esse exímio plástico é inversamente proporcional ao que filme diz sobre o mundo, restando a sensação de que somos desconsertados pela maneira como mostra, mas nunca por aquilo que mostra.

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          Em dado momento de Medusa, Michele grava um vídeo em que ensina “como tirar uma selfie perfeita e cristã”. A lição transmitida aos seguidores é de que “na hora de segurar o smartphone, é importante que ele esteja em linha reta – porque debaixo é o olhar do inferno, não queremos; e de cima, quem somos nós para imitar o olhar do senhor?”. Cuidado do tipo, embora de outra ordem, também seria preciso ao abordar a religião pentecostal.

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          A diferença entre Medusa e outros filmes recentes que retrataram o imaginário religioso, como Terremoto Santo (2017) e Divino Amor (2019), é que esses interpretaram o neopentecostalismo como um dispositivo cultural complexo e até certo ponto inacessível. Medusa, ao contrário, interpreta-o de forma maniqueísta, o bem como o bem, e o mal como o mal. O risco de tomar a religião pelo que ela de tem pior é dar vazão ao preconceito de parte da elite cultural brasileira, em especial contra os evangélicos. Não é demais lembrar que essa mesma elite achava graça de pastores fanáticos e gente ignorante falando de diabo. Quem não achou foi Jair Bolsonaro, convertido ao neopentecostalismo durante o impeachment de Dilma. De lá para cá, a própria esquerda se reeducou e aprendeu sobre o assunto. A noção de que a religião, a precariedade material e a ausência de políticas públicas são fios de um mesmo novelo se tornou parte do discurso de acadêmicos, jornalistas e políticos bem-intencionados.

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         Terremoto Santo tem esse cuidado quando rejeita a mera adesão a um conjunto de marcadores externos que compõem uma identidade (códigos linguísticos, preferências estéticas, etc.), e toma distância ao tratar o pentecostalismo como uma linguagem em si mesma. É assim que o curta-metragem de Bárbara Wagner e Benjamin Burca repõe o fosso epistemológico e, ao mesmo tempo, traduz essa distância numa proposta genuína de aproximação.

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        Já Divino Amor, de Gabriel Mascaro, embaralha os signos e provoca um curto-circuito na representação. O bem é o bem, mas é também o mal, e vice-versa. A exemplo da prática de troca sexual entre casais que celebra, ao mesmo tempo, elementos cristãos (o sexo como meio de reprodução) e mundanos (a sensualidade dos corpos, das luzes, do ritual), o filme trabalha por meio de jogos de cena onde nossa impressão sobre qual dos dois vai prevalecer é continuamente sabotada.

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         Em Medusa, a ausência de ambiguidade é um limite moral e que afeta a eficácia do drama político. Uma vez que responde, por si só, todas questões levantadas, o filme acaba permitindo que as pessoas se esquivem delas. Quem trabalha na fronteira entre a produção de grande estrutura e o cinema autoral de gênero, como Anita, não precisa (nem deve) renunciar à crítica. Resta torná-la exigente suficiente para assim estar à altura de representar a cruzada moral e velho-testamentista em curso no país.

 

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Outubro, 2022

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