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Acerca de

Ryûsuke Hamaguchi e o cinema do ouvir

por Gabriel Carneiro

          Drive my car (2021) acompanha, entre outros, o processo de montagem da peça Tio Vânia, do russo Anton Tchécov. Muito do filme gira em torno dos bastidores, dos ensaios, dos propósitos da encenação, buscando frequentemente uma correlação entre o texto de Tchécov e a situação vivida pelos protagonistas, o ator e diretor teatral Yūsuke Kafuku (Hidetoshi Nishijima) e sua motorista Misaki Watari (Tōko Miura), que experienciam o luto e precisam encontrar alguma forma de seguir em frente. No entanto, Drive my car também é um filme sobre os dilemas da comunicação, tema frequente na filmografia Ryûsuke Hamaguchi. 

          Drive my car burila essa instância em duas frentes. De um lado, há todo o método proposto por Kafuku, que encena suas montagens de maneira multilíngue, em que cada ator fala uma língua diferente e, mesmo sem entenderem o que está sendo dito, precisam representar como se compreendessem. Ele trabalha há anos com esse processo e há anos com Tio Vânia, frequentemente interpretando o protagonista. O filme nos conta isso em um longo prólogo de 40 minutos que nos situa em sua vida e culmina na morte da esposa, com quem tinha uma relação complexa. Drive my car, no entanto, foca mais nos eventos de dois anos depois, quando Kafuku assume um trabalho como artista residente em Hiroshima e é quando vemos com detalhes sua metodologia posta em prática.

        Para a encenação em Hiroshima, Kafuku escala, entre outros, atores do Japão, da China, das Filipinas e da Coreia do Sul. Cada ator fala uma língua diferente, japonês, coreano, mandarim, tagalo. Uma das atrizes, muda, se comunica na língua coreana de sinais. Para conseguirem dialogar em cena, mais do que ensaiarem, precisam, primeiro, ler e decorar seu texto, e, segundo, e muito mais importante, escutar. Por isso Kafuku – mimetizando o próprio processo desenvolvido por Hamaguchi ao longo dos anos – repete à exaustão mesas de leitura, em que incentiva os atores apenas a lerem o texto muitas vezes e sem tentarem impor uma emoção a ele. Precisam aprender a ouvir o colega e assimilar as vozes, os sons das palavras, suas inflexões, o ritmo. Essa parece ser a principal tônica do cinema de Hamaguchi: como, para nos comunicarmos, precisamos saber escutar.

         O cineasta sempre se interessou por filmar as relações humanas mais triviais e a crise dos relacionamentos amorosos convencionais. Desde seu primeiro filme, Like nothing happened, de 2003, rodado amadoristicamente em super8, vemos amigos e casais em encontros, conversando, tentando se entender. Passion (2008), seu longa de conclusão de curso, inspirado no estadunidense John Cassavetes, fala sobre as relações amorosas de um grupo de amigos que se aproximam dos 30 anos. Em Passion, no entanto, Hamaguchi ainda não havia descoberto a escuta como fundamento da comunicação. Numa das primeiras cenas do filme, por exemplo, vemos diversas pessoas à mesa de um restaurante. Estão lá para comemorar os 29 anos de uma das personagens. Durante a conversa, ela conta que vai se casar com o namorado, o que gera uma comoção – desde pessoas celebrando o fato aos que ficam enciumados. Como é frequente nos filmes de Hamaguchi, os personagens falam bastante e quase não há espaço para o silêncio. Ao filmar a cena, o cineasta opta por uma decupagem funcional e quase frenética. Cada personagem é filmado em close. Antes de começar a falar, a câmera corta para o personagem em questão. Estamos sempre a vê-los falar, raramente a vê-los escutar, como se o interesse fosse sempre no discurso, na ação, e nunca na reação. 

       A importância do ouvir começa a ficar mais clara para o cineasta quando realiza o documentário Nami no oto (2012) ao lado de Kô Sakai. O projeto original era de captar imagens da região de Tōhoku após o desastre natural de 2011. No entanto, Hamaguchi e Sakai resolveram fazer um filme propriamente e para tal entrevistaram diversas vítimas do terremoto e do tsunami de 11 de março. O longa consiste basicamente em pessoas contando suas histórias. Ao invés de registrar entrevistas, filmaram como conversas. Duas ou mais pessoas dialogam sobre a tragédia, mas também falam sobre a vida. Os diretores optam por planos conjuntos, em que mostram todos os interlocutores, e por uma montagem de campo e contracampo, como é costume na ficção, em que a câmera alterna entre um e outro. Em determinados momentos, a dupla vai mais além e assume o ponto de vista de um dos interlocutores. Vemos, então, uma das pessoas falando diretamente para a câmera – ela, e por conseguinte nós, se torna a outra ponta do diálogo, aquela que escuta. Ao fazer isso e por optarem por não incluírem imagens de cobertura, mais do que quebrar um padrão da estética documental, evidenciam a importância do que está sendo dito e de quem está dizendo. Os diretores constantemente chamam a nossa atenção para aquelas pessoas, para que prestemos atenção a elas, para a que suas histórias e suas experiências importam. Hamaguchi e Sakai ainda fizeram mais três documentários relacionados em que aprofundam a experiência sensória e estética: Nami no koe: Shinchimachi (2013), Nami no koe: Kesennum (2013) e Storytellers (2013).

        A experiência de Nami no oto impacta profundamente o cinema de Hamaguchi, não só em termos de conteúdo – tanto Happy hour (2015) quanto Asako I & II (2018) trazem personagens diretamente sensibilizados pelos eventos de 11 de março de 2011, por exemplo –, como também na forma. O cinema de Hamaguchi passa a ser um cinema essencialmente do ouvir, mais preocupado em mostrar seus personagens absorvendo ou reagindo ao que está sendo dito, do que do falar. Ouvir se torna mais importante. A fala assume o protagonismo em cenas pontuais, específicas, denotando formalmente sua relevância. 

        Voltemos a Drive my car. Lá há duas cenas-chaves para entender essa dualidade – essa sendo a segunda instância mencionada anteriormente. Para Kafuku, dirigir seu carro é parte do processo. Quando a instituição que o contrata lhe impõe que uma outra pessoa dirija seu carro, ele fica bastante contrariado. Durante as travessias, ele e a motorista quase não se falam. Na primeira cena em questão, após jantarem na casa do produtor e de uma das atrizes do espetáculo, em que Kafuku confessa gostar muito da forma como Watari dirige, apontando ali quase uma maestria artesanal, eles travam um diálogo. A conversa começa trivialmente, mas aos poucos se aprofunda. Ele conta sobre a fita que coloca para ouvir em todas as viagens, em que a esposa diz as falas de Tio Vânia para ele treinar. Ela, por sua vez, conta sobre como aprendeu a dirigir e sobre a mãe, também falecida. A cena toda transcorre no carro. Ela na frente guiando, ele atrás. A configuração do espaço impossibilita um diálogo frontal e aponta ainda uma hierarquia. Hamaguchi alterna closes dele e dela, frequentemente dando mais espaço para os personagens que escutam. Apesar de estarem enfim se comunicando, o filme os separa pelo enquadramento. Ao final da cena, vemos um plano conjunto, os dois em quadro, como se enfim se criasse uma sintonia entre eles. O plano termina com ela olhando em direção ao espelho retrovisor, ambos, naquele instante, podem se olhar e partilhar algo mais do que a palavra. 

        Na segunda cena, próximo ao final do filme, estão novamente no carro, mas a configuração espacial mudou. Kafuku não está mais no banco traseiro, mas ao lado de Watari. Horizontaliza-se a relação. A cena começa e termina com os dois no quadro. Partem, portanto, do mesmo lugar; parece haver uma relação estabelecida entre os personagens que antes não existia. Tal como na cena anterior, vemos uma conversa, em que falam mais detalhadamente sobre o luto e sobre a perda dos entes queridos e a dificuldade de superar isso. A encenação do diálogo muda. A câmera enquadra os personagens frontalmente e eles falam como que para nós. E se detém a eles enquanto falam e menos nas reações. Ali, como nos documentários, somos guiados a realmente prestar atenção ao que proferem, aos sentimentos expostos enquanto se comunicam, quase como se, enfim, víssemos a verdade deles.

 

A comunicação para além da palavra

       A ideia da escuta, no cinema de Hamaguchi, ganha também contornos metonímicos. Não é simplesmente a função auditiva, biológica, e sim tudo que o ouvir pode abarcar no sentido expandido da comunicação. Por isso a personagem que não fala e se comunica por sinais é tão emblemática em Drive my car. Para apreendermos o que ela expressa, precisamos de um conjunto de sentidos atentos e focados. A comunicação em Hamaguchi pertence a todo corpo.

         Happy hour, o filme de 5h17’ que chamou a atenção para o diretor nos festivais, nasceu de uma oficina de atuação e de improvisação para não profissionais realizada por seis meses em Kobe, em encontros semanais, cujo tema central era justamente "ouvir". Inicialmente, ao término seria rodado um filme em um mês com os 17 participantes. A oficina, entretanto, foi tão frutífera que o processo tomou oito meses e rendeu a longa duração final, de forma que pudesse expressar tudo que fora vivido ali. Se Happy hour e o anterior Shinmitsusa (2012, "Intimidades" em tradução literal), também fruto de um curso, moldaram o método hamaguchiano de direção de atores, as modulações da comunicação já aparecem em The depths (2010), seu terceiro longa-metragem, uma parceria entre a Universidade de Artes de Tóquio e a Escola de Cinema da Coreia do Sul. 

       Assim como em Drive my car, em The depths há os desencontros linguísticos, entre personagens – e atores – japoneses e coreanos, em especial no trio protagonista, em que apenas um deles fala ambas as línguas. Em sua ausência, os outros dois personagens precisam encontrar formas de compreensão, que passa pela mímica, mas está especialmente ancorada nos gestos, nos toques, nas expressões faciais. Já no média Bukimi na mono no hada ni sawaru (2013, "Tocando a pele estranha" em tradução literal), dois colegiais ensaiam um número de dança contemporânea que consiste em se movimentar pelo espaço, a um palmo de distância um do outro, mimetizando o mesmo movimento, sem, no entanto, se encostarem. Os passos não são ensaiados e a locomoção é livre. Ambos precisam encontrar uma sintonia que possibilite antever o movimento seguinte e se adequar a ele.

      Em Happy hour, essa questão ganha novos contornos. Os dilemas da comunicação perpassam todas as instâncias do filme. Em uma longa sequência, vemos uma oficina ministrada por Kei Ukai (Shuhei Shibata). Voluntário em Tōhoku após o terremoto e tsunami, começou, nas horas vagas, a equilibrar objetos e destroços em apenas uma ponta. O ato chamou a atenção de instituições e organizações como uma instalação artística, o que fugia a seu propósito. Permitiu-lhe, entretanto, utilizar o espaço cedido para outras propostas. A oficina que oferece tem um quê esotérico: a partir de uma série de exercícios, quer fornecer ferramentas aos alunos para encontrarem o próprio equilíbrio interno e o equilíbrio com o outro, de forma que possam escutar o âmago. Na prática, o que Ukai faz é explorar maneiras não convencionais de comunicação, especialmente na sociedade japonesa, tão avessa ao toque. São quatro exercícios: duas pessoas (depois mais, chegando a dez), de costas entre si, devem tentar se levantar sem usar as mãos para a apoio; duas pessoas (depois mais) devem encontrar uma linha central de equilíbrio entre eles e se moverem em círculo sem perderem a referência; uma dupla deve literalmente escutar as estranhas um do outro, ouvir os sons dos órgãos, com a cabeça encostada na barriga; e, por fim, devem encostar as testas, mentalizar uma imagem ou palavra simples, de forma a transmitir esse pensamento ao outro. Todos os exercícios, de uma forma ou de outra, buscam uma sincronia nos encontros, uma partilha que prescinde do verbo, da palavra, do inteligível. 

       As quatro protagonistas de Happy hour estão presentes na oficina e cada uma delas lida com seus próprios problemas de comunicação em suas vidas. Seus relacionamentos amorosos, por exemplo, esbarram nas dificuldades de adequação de uma vida a dois numa sociedade patriarcal. A dona de casa Sakurako (Hazuki Kikuchi), por exemplo, é sobrecarregada pela completa administração da família, que a culpabiliza pelas eventuais diatribes, como a gravidez inesperada da namorada do filho adolescente. Sakurako é invisibilizada pelo marido e pelo filho e não consegue manter um mínimo de diálogo no lar, refutada constantemente. 

        A situação é ainda mais grave para Jun (Rira Kawamura) que, após oito anos de casamento infeliz, quer o divórcio. O marido não quer, diz que as coisas mudarão. Como a decisão não é consensual, ambos precisam ir ao tribunal e, para o divórcio ser concedido, é necessário um evento de disrupção, que não existe nesse caso. No julgamento, Jun explica que nunca houve diálogo entre eles, que raramente se falavam e que o marido não demonstrava interesse nela. No processo, o advogado do marido alude ao fato de que deveriam buscar a comunicação ao invés do divórcio e que o marido, nos últimos tempos, havia tentado. Enquanto Jun fala, Hamaguchi frequentemente filma a cena em planos conjuntos: Jun, o marido e o advogado dele; Jun e as amigas na plateia, presentes como suporte emocional. O foco raramente está em Jun. Ela fala em primeiro plano, desfocada, e observamos o marido, o advogado dele e as amigas a escutarem. A ação é bastante desdramatizada, como é frequente no cinema do diretor, e há mudanças quase imperceptíveis nos gestos e nas impressões. Apreendemos pela duração, pelo tempo que o cineasta dedica a seus corpos em cena. Há combinações específicas: Jun e o marido denotam o contraste entre o que é falado e o que é escutado, por ambas as partes; entre Jun e as amigas só há cumplicidade, Jun fala, elas escutam e se consternam. A situação é toda meio constrangedora. Jun fala baixo, ritmado, quase não levanta o semblante. Assim como faria em Drive my car, Hamaguchi já faz em Happy Hour. A câmera centraliza em Jun, em primeiro plano, com as amigas ao fundo, sentadas de forma a compor um mosaico em que podemos enxergar cada uma delas. No centro e no foco Jun fala as palavras mais duras e dilacerantes. Cabisbaixa, levanta o rosto e olha diretamente para nós: “Eu fui morta pelo meu marido”. A afirmação é uma metáfora, mas responde pelo seu estado de espírito. Devido à indiferença do marido diante dos constantes esforços dela em fazer o casamento funcionar, ela sentia que suas melhores partes estavam sendo assassinadas. A frase de efeito ganha contornos especialmente dramáticos na encenação, em que mínimos gestos denotam a intenção e a atitude. Mais do que a palavra, nos diz Hamaguchi, a comunicação, o diálogo, o entender o outro, o ouvir, escutar, estão nas inflexões do corpo.

         Em Drive my car, o ato de dirigir é chave para um encontro – e encontros possibilitam continuar, apesar de todos os sofrimentos.

Abril, 2023

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