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Godard: viver e criar
ao contrário

por Tainah Negreiros

          A casa onde vivo fica a cerca de 30 kms da casa de Jean-Luc Godard. Tenho alternado a vida entre São Raimundo Nonato, São Paulo e Renens/Lausanne desde 2020, quando vim trabalhar como pesquisadora, financiada pelo governo suíço, e desde então estou nesse vai e vem. É uma dessas coisas malucas da vida de levar a gente de um lugar pra outro. Assim que soube, a Maria Chiaretti e o Mateus Araújo me disseram: “ah, vai morar perto do Godard e do Straub”. 

          Descobrir onde o Godard morava era fácil. Em Rolle, apesar da sua discrição, era conhecido pelos passeios no lago e por um café específico no qual ia ler o jornal, provavelmente o Libération. Eu já tinha ido lá outrora, de trem, na esperança de vê-lo, e também como especulação sobre a cena do filme Visages, Villages (2017), de Agnès Varda, filmada na porta da sua casa e no lago. Quando fui, era uma final de Wimbledon, e provavelmente Godard devia estar quieto, em casa, assistindo a um esporte de vai e vem, que, segundo ele, mimetizava a lógica do seu pensamento e sua relação com o mundo.

          Dessa vez, em uma atitude impulsiva, deliberada, mal explicada, saí de casa com uma garrafa de água e algumas uvas na mochila, vesti vermelho e azul, ajustei a cela da bicicleta de passeio - que é nada leve, nada esportiva, feita para pequenas distâncias - e fui em direção ao lago Léman. A bicicleta é difícil, quando me levanto para atingir uma velocidade maior ela não responde, segue lenta, reage mal à força desprendida. Em uma dessas tentativas, enquanto passava por um grande campo verde suíço, de natureza domesticada, lembrei de Salve-se Quem Puder (A Vida) (1980). Foi bem quando Nathalie Baye fez o mesmo movimento em um fundo verde de árvores e Jean Luc Godard decidiu por congelar a imagem e fragmentá-la para nos lembrar que é imagem. A minha bicicleta ruim parecia a intencionalidade de Godard. Ali, como por todo o seu cinema, como nos jump cuts de Acossado (1960), como no comentário sobre a dança de Banda à Parte (1964), o que ele fez foi nos lembrar que as imagens são imagens, e que o cinema é coleção e associação delas. Não são a vida, não são tampouco a verdade, mas pode acontecer da verdade estar nelas. 

         Enquanto pedalava, me perguntava o que me levava a fazer essa espécie de peregrinação. O cinema do Godard é importante demais pra mim, mas nunca foi por ele que pensei que pedalaria. É uma dessas coisas que se descobre na hora, que o impulso revela sobre nós mesmas. Comecei a buscar na memória que espécie de gratidão me fez fazer este percurso. Mesmo sem ser uma esportista, mesmo com as pernas já doloridas daquela forma estranha que até traz um tipo de prazer, segui fazendo algumas pausas, pensando nos filmes e nas palavras. Lembrei de quando eu tinha 17 anos e li Godard falar do cinema a partir da visualidade necessária para ver certas invisibilidades. Algo consensual, compreendido bem pela minha geração, mas que pra mim foi muito novo, e me orienta mesmo quando eu não estou consciente de que orienta. Segui pedalando.


        Torci profundamente para que no meio do caminho eu encontrasse algum cachorro. Algum cachorro desses cinematográficos sem pedigree como é a Roxie, de Adeus à Linguagem (2014). Este que foi um dos primeiros filmes que evoquei quando soube que Godard havia partido. Pensei no Godard contemporâneo, 3D, com a causa animal entre as lutas. Pensei na saturação dos verdes, no tipo de imagens que ele relacionou naquele filme e nos barcos mais ou menos à deriva que vão nos conduzindo pelo Brasil, Europa, Palestina, Sérvia. No caminho encontrei um pequeno cão que falou comigo, e aquela que o levava também. Antes dele um gato de cabeça grande como são os gatos europeus e aqueles de Filme Socialismo (2010) que tanto representam uma imensa rebeldia, liberdade e tensão presentes naquele filme, que vi no cinema e jamais revi. As coisas foram acontecendo e os filmes foram sendo solicitados. 

 

          Alguns filmes giravam na minha cabeça e têm estado muito presentes desde então. Carmen (1983) é uma constante desde que revi. O desamparo da/do artista e da/do bandido social. É um filme que tem a beleza triste das profundas compreensões, das lutas perdidas. Assim como é Nossa Música (2004). Sobretudo depois da derrota para o fascismo nas eleições de 2018 no Brasil, tenho pensado na derrota, no tratamento formal dado à derrota por cinemas como o de Jean-Luc Godard. No que parece derrota, mas na verdade é só a força da regra, que a arte e a resistência reinventam, como bem ele mostrou, em Je vous Salue Sarajevo (1993). Uma imagem einsensteinamente decomposta para falar de um estado de coisas, de uma longa duração. Contra a morte de Godard, ensaio dizer todas essas coisas. Tive vontade de chorar muitas vezes no caminho, de pensar que o cinema dele é aquele devotado para a beleza das causas perdidas e de uma persistência qualquer diante disso. Penso no viver e morrer de Je Vous Salue Sarajevo, na luta aberta feita com cores primária e mensagens diretas em A Chinesa (1967), penso no dilema proposto por Glauber Rocha na encruzilhada em Vento do Leste (1969), penso nas imagens que Godard produziu e nas novas imagens que ele construiu com as imagens das outras e outros em História(s) do Cinema (1980-1988) e Imagem e Palavra (2018). Penso novamente em Nossa Música


        As conexões que Jean-Luc Godard fez, os seus livros de imagens, as palavras que ele transformou em imagem através de articulações bastante próprias, tudo compõe um conjunto belo e rebelde de elogio à inadequação. Godard viveu e morreu como um inadequado, ao contrário, imperfeito, muito certo, equivocado, perdido como um Pierrot entre vermelhos e azuis, como um articulador livre de pensamentos, melancólico como o protagonista de Elogio ao Amor (2001).  

          O ano é 2022, os filmes de Jean-Luc Godard circulam pelo ar, em arquivos de torrent, em telas de celular, em looping em exposições de arte, lembrando alguma coisa que permanece: a desigualdade, a injustiça. Mas também a radical inadequação, a dignidade pictórica daquelas e daqueles que lutam, a regra da cultura, do capitalismo, e a arte como interrupção da ordem. Como nunca - como em Kiarostami, como uma flor no meio de Teerã, como no poema de André Dias, - a arte interrompe a regra e nos ajuda a seguir mesmo nas mais devastadoras constatações. Mesmo quando não se consegue financiamento para um próximo projeto, mesmo quando há quem ainda não tenha o que comer, quem ainda não possa viver em paz em seu próprio país. Ao final do passeio, depois de quase quatro horas, já parada à beira do lago, meio chorosa, à noite, segurando uma flor que deixaria pra ele, descobri que pedalei até Godard como um elogio ao amor, ao amor por esse mundo apesar dele, ou um elogio qualquer a qualquer coisa, um elogio ao ser ao contrário que um ritual como esse anuncia. Valeu!

 

Outubro, 2022
 

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