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Dois lobisomens latino-americanos em Londres

por Juliana Costa

          Em Londres, aja como os londrinos, e em 1970, Julio Bressane fez as malas e foi matar loiras na cidade de Jack, o estripador, em Memórias de um Estrangulador de Loiras (1971). Mas é outro loirófobo/loirofóbico inglês que vamos evocar nas imagens de Bressane no velho mundo: Alfred Hitchcock. Em 1958, Hitchcock já havia matado ou tentado matar muitas e muitas loiras ao longo de 35 anos de carreira. É em Um Corpo que Cai (1958) que o leonino mais amado e odiado da história do cinema expõe as entranhas do seu caráter controlador como diretor de cena e construtor de imagens (e de loiras). No filme, Madeleine (Kim Novak) é uma imagem primorosamente construída para um olhar traumatizado, sem corpo, um típico espectador da sala escura. James Stewart com sua bengalinha (e em 1954, Hitchcock já havia deixado o ator sem pernas em Janela Indiscreta) não é o que podemos chamar de um macho alfa, e todo o plano de Gavin Elster para matar a sua esposa é baseado no seu medo de alturas. 

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          Tomando a imagem como a presença de uma ausência, e ainda, a imagem cinematográfica como uma fantasmagoria construída para criar um efeito de realidade, Madeleine é a imagem perfeita, criada sob medida para aquele olhar pedindo para ser iludido. E não são poucos os indícios que nos fazem ver Madeleine como uma representação: suas aparições emolduradas, os constantes reflexos, os planos retratos, suas aparições e desaparições, sua personalidade opaca.  É contra essa imagem, a do prazer ilusionista, da farinha do desejo capitalista da indústria cinematográfica, que Laura Mulvey, pioneira das teorias feministas do cinema, direciona a sua ferocidade e sua teoria ao longo dos anos 1970. Esta mesma imagem que Hitchcock se orgulha de produzir, matar e recriar a cada filme. 

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         Quando o fantasma é morto (?) e renasce Judy com seu corpo e seus desejos de mulher, imperfeita, apaixonada, ela não serve mais para a ilusão, e o Sr. Bengalinha, atormentado pela descoberta de haver sido enganado, ou melhor, de ter desejado ser enganado, vai matar este corpo para transformá-lo, novamente, em imagem, e seguir em seu estado de torpor. Em Um Corpo que Cai, o diretor expõe, com total consciência, os seus procedimentos e suas estratégias ilusionistas. O crime perfeito.

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          Hitchcock sabe bem construir seus filmes e suas loiras, e adora exibir seus dotes assassinando-as, quando lhe convém. Assim o fez em Psicose (1960), ao matar, no meio da película (a audácia!), a protagonista à qual já estávamos apegados - e, consequentemente, o filme que estávamos vendo –, ou em Disque M para Matar (1954), em que filma uma cena com o marido mandante de um crime, o amante da esposa-vítima e um detetive, os três especulando vivamente sobre o plano perfeito para matar a mulher. E o plano perfeito (com o perdão do trocadilho) é o que Hitchcock busca, para frustrar as expectativas e reavivá-las, como um controlador de sonhos, como um Freddy Krueger, para citar outro serial killer manipulador, que vai ao cerne do desejo do espectador-sonhador para atirá-lo ao abismo. 

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          Esta, é claro, é só uma parte da história, e não podemos reduzir a obra de Hitchcock a tais especulações. Mas é a que nos interessa para pensar nas aventuras de Guará e Bressane em Londres. Saindo da borda do mundo, em auto-exílio, nossos heróis latino-americanos chegam à capital das loiras e também querem brincar de matá-las. Por que não? Logo nos primeiros minutos de Memórias de um Estrangulador de Loiras (1971), Bressane filma sua mão diante da câmera. O criminoso apresentando a arma do crime? Quer nos despistar? É um aviso sobre quem está matando aqui. Como as célebres aparições de Hitchcock como figurante em seus filmes (não por acaso em Um Corpo que Cai ele aparece em frente ao escritório de Gavin Elster, o cérebro por trás do plano), Bressane nos diz “eu estou aqui”. É a mão que estrangula, a mão que dirige, a mão que cria a imagem e a mão que manipula os títeres da mise en scène. A mão de um corpo que tem um olho. Uma mão que corresponde a um olhar. Mas também é a mão de um brasileiro em Londres. É com certa alegria que Bressane nos acena, nos mostra a sua mão: “Ei! Isto é uma imagem, mas eu estou aqui, eu tenho um corpo!”. Mão que voltará em muitos de seus filmes e ensaios posteriores, como em Nietzsche Sils Maria Rochedo de Surlej (2019), e Ver, Viver Reviver (2007), quando visita o túmulo de Antonioni em Ferrara.

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          Em seguida, um prólogo: Bressane nos apresenta um bebê, que aparentemente não nutre afeto por seios, ou algo assim. Este bebê parece ser Guará, que, agora adulto, torna-se um personagem traumatizado, vivendo parte de sua vida enclausurado em um apartamento funcional em Londres. Começam as primeiras mortes. Não por acaso a primeira loira estrangulada está emoldurada por paredes e pilastras de um complexo de casas inglesas. É uma imagem recorrente. As mortes se multiplicam, assim como os cenários, que são quase sempre os mesmos: o parque, a cerca da casa, alguns cafés do bairro. Mas não os enquadramentos ou as cenas. Guará estrangula em plano-detalhe, em plano-sequência, em plano aberto, de frente, de costas, mostrando somente os pés, refletido no espelho, dentro de quadro, fora de quadro, em plongée e em contra-plongée... Um pot-pourri de linguagem cinematográfica estrangulando loiras.

 

          Matar é estabelecer um poder. Quem detém o poder da narrativa? Aqui é Bressane e Guará que, ao se depararem com as loiras intermináveis de Londres, matam uma a uma. Todas são loiras, os parques são loiros, as casas, os carros. As imagens da cidade da ordem e da civilização se alternam às do quartinho em que Guará dorme, caga e toma café. Vocês podem não acreditar, mas Londres é loira. As loiras são a imagem do cinema clássico, talvez mesmo os séculos de colonização, real e imaginária. A jóia do império, a menina dos olhos da coroa. Mas elas não morrem nunca! Continuam voltando e voltando, elas não param de surgir. O filme começa a ficar perturbador. São imagens de segunda e terceira e quarta geração (existem tantas?). E são sempre as mesmas - talvez Bressane e Guará não tivessem tantas amigas loiras para fazer tantos papéis de vítimas. São como as cabeças da hidra, você mata uma loira e vem cinco. 

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          Os planos fixos e bem enquadrados enganam um controle que não está nas imagens ou nos personagens. Bressane quer exercer seu controle, mas algo escapa, propositalmente, é claro. E o que escapa não está na narrativa, por óbvio, mas nas imagens. Eles parecem não ter nenhum controle sobre aquela imagem que se repete. Nosso Hitchcock à brasileira vai sendo tomado por mulheres desvanecendo, até que a morte em abismo, absolutamente descontrolada, domina o filme. Mas não por completo. Bressane toma as rédeas de Memórias de um Estrangulador de Loiras jogando com a decupagem hitchcockiana. O mesmo tipo de decupagem que Laura Mulvey recusa  fazer em Enigmas da Esfinge (1977), operando através de uma mise en scène do espaço, filmando um plano aberto em 360°, na forma esférica do mundo, em oposição aos quadradinhos do desejo do cinema clássico. Quadradinhos estes que, nas mãos de Bressane, levam o desejo a outra dimensão, um pouco mais quente, eu diria. 

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          Para além das mortes em série - pode-se dizer um pioneiro do slasher - Bressane também lança mão de imagens que remetem a filmes seus, imediatamente anteriores, como A Familia do Barulho (1970) e Matou a Família e foi ao cinema (1969), e imagens de acervo pessoal. Em contraste com o imaginário londrino que emoldura as ações de Guará, surge um acervo de retratos e de paisagens em movimento que estabelece a relação entre estrangulador e diretor, Guará e Bressane. Uma esquina no Rio de Janeiro, Renata Sorrah encarando a câmera: as memórias do estrangulador são as memórias de Bressane, ecoando uma nostalgia do presente, pois datam de um ou dois anos antes, mas que, em fricção, com a loira Londres, já parecem tão distantes. Um atlântico de tempo passado. 

 

          No final, entre as imagens de um Guará lendo na privada e outro velho, de bengala, um remorso: “Nós somos o que a civilização chama de INUMANOS.” O personagem, ainda em Londres, se ressente de algo. As ações mórbidas ininterruptas se tornam reflexão. Fazer e depois pensar: a mão que mata, agora escreve. Ao término de suas memórias, o estrangulador se dirige a “nós”. Divide com o espectador a responsabilidade por aquele exército de loiras abatidas. Se ele as matou, nós as vimos morrer. Ou o “nós” se refere a uma categoria exclusiva à qual apenas Bressane e seu alter ego pertencem? Nós quem, Bressane? Os homens? Os assassinos? Os latino-americanos em Londres? Os cineastas? Há diferença? 

 

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Outubro, 2022

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