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Acerca de

A ferida aberta do artista num mundo morto

Crimes do Futuro (David Cronenberg, 2022, EUA)

por Filipe Furtado

     Muito mais do que a maioria dos seus colegas que começaram no cinema de exploitation dos anos 1970, David Cronenberg foi sempre consciente do seu lugar. É algo que lhe serviu bem enquanto se movia por uma série de papéis diferentes, ao longo das cinco décadas da sua carreira. Filmes tão diferentes como The Brood – Os Filhos do Medo (1979), Videodrome (1983), A Mosca (1986), Gêmeos – Mórbida Semelhança (1988), Almoço Nú (1991) ou eXistenZ (1999) lidam diretamente com a criação e suas consequências, e questões médico/psicológicas são, por vezes, colocadas como representantes do esforço criativo - a figura do artista a se revelar um descendente direto de Victor Frankenstein. Mesmo um filme como Marcas da Violência (2005), tão aparentemente ligado às regras básicas do cinema de gênero, coloca estas mesmas idéias em primeiro plano.

     O novo Crimes do Futuro (2022) retira seu título do primeiro filme de Cronenberg, quando estas preocupações já estavam ali, porém ainda não canalizadas por uma pulsão narrativa mais orgânica. É certamente uma decisão intencional marcar um retorno a uma fonte original, e o filme foi fortemente divulgado como um grande regresso do diretor ao horror corporal. Não lhe faltam significantes reconhecíveis na tela, mas, aqui, o filme é muito mais assombrado pela ideia do lugar do artista do que pelo corpo em si, sendo este corpo falho e agonizante uma consequência direta do lugar incerto daquele. As similaridades entre os dois Crimes do Futuro começa pela forma que o de 2022 é um filme ensaístico e autoconsciente, com grandes dificuldades de fazer sua estrutura narrativa se mover de um bloco de ação para outro. É um filme falastrão, que versa sobre como corpos executam uma série de ações físicas; horror de corpo como uma forma de discurso. O que significa que existe uma constante alternância de registros entre o discurso e sua consequência física. Embora anunciado como um retorno a terreno conhecido, a versão deste ano não tem interesse em prazeres de gênero, sendo este distanciamento precisamente um dos seus pontos chave. Na superfície, o filme é organizado como uma série de tópicos de discussão: os significantes reconhecíveis são apresentados da forma mais literal possível, uma espécie de texto fílmico a ser lido. Crimes do Futuro nos os oferece para lermos e reagirmos ao mesmo tempo que os reconhece como distrações menores. Em tempos preguiçosos, isto deveria ser o suficiente, e jogar com esta leitura superficial é parte da estratégia do filme.

     O que significa para Cronenberg retornar a este espaço? Esta é uma questão que ele já se perguntou antes. É o centro temático de eXistenZ, o último filme antes de Crimes do Futuro no qual contribuiu com um roteiro original. Antes disso, não trabalhou com um desde Videodrome; de A Hora da Zona Morta (1983), sua adaptação de Stephen King - primeira tentativa real de deixar o gueto do exploitation -, em diante, o realizador canadense vem servindo como um adaptador que, com frequência, mina materiais reconhecíveis e prefere uma estética mais sóbria e respeitável.

     eXistenZ foi o primeiro filme de gênero de Cronenberg desde A Mosca. Críticas da época traçaram muitas comparações com o então recém-lançado Matrix (1999); e é verdade que os dois longas-metragens são parte de uma série de filmes angustiados sobre a realidade virtual lançados na época [junto a Cidade das Sombras (1998) e O 13º. Andar (1999), para mencionar mais um par deles]. Mas o que importava era o quão distante eles estavam entre si. eXistenZ é essencialmente autorreferencial, uma simulação de cyber thriller ao invés de um simulacro do mundo real, menos preocupado em tecer um comentário contemporâneo. Àquela altura, o cinema popular já se tornara mais um tema útil para o antigo cineasta de horror e ficção científica cujas próprias preocupações com o assunto eram vibrantes, mas insulares. A título de ilustração, ganha-se muito pouco falando de Baudrillard quando se lida com eXistenz, ao contrário de Matrix. O horror de corpo toma o mesmo papel em Crimes do Futuro, como antes o diretor pegara emprestado dos romances aclamados nos quais Crash - Estranhos Prazeres (1996) e Spider - Desafie Sua Mente (2002) eram baseados. Fala-se muito sobre o corpo, mas isto é apenas uma porta de entrada para um filme sobre como seu mundo ecoa e lamenta o nosso. 

     Cronenberg, muito mais que qualquer outro cineasta, fez o movimento do 'cine poeira' para o cinema de arte numa maneira que sugere menos um desejo por respeitabilidade que praticidade (Abel Ferrara é o único outro candidato, mas ele sempre se sentiu mais confortável como um artista maldito). Depois de funcionar como um realizador de horror pelos anos 1970 e 1980 - sendo o seu maior sucesso do período A Mosca - abandonou o filão quando se desfez o velho sistema que sustentava filmes de gênero independentes, de baixo e médio orçamento, ambiciosos e viáveis, na medida em que Hollywood absorvia o antigo exploitation pelo circuito de festivais. Enquanto um tipo de cinema desaparecia porque as condições que o mantinham secaram, uma reconhecível série de ideias estilísticas e significados foram transplantados num novo corpo fílmico - o que é outra maneira de dizer que o artista permaneceu consistente, mesmo quando seus patronos endinheirados mudaram radicalmente. 

     Este processo é muito central para evidenciar como Crimes do Futuro se equilibra entre diferentes abordagens e noções de patronagem artística, que também recorrem através de filmes diversos como Almoço Nú, eXistenZ. Reconhecer o autor importa num filme que é sobre o problema do artista diante dos horrores cotidianos, e é isto que separa Crimes do Futuro de seus trabalhos anteriores: se Cronenberg sempre suspeitou bastante do mundo ao redor do artista, agora ele se revela muito mais ansioso em relação a ele. "Será que o papel do artista ainda possível neste mundo?’, o filme parece repetidamente questionar. 

     Ainda que um manifesto artístico, a obra está muito distante do trabalho seco e teórico com o qual pode a princípio ser confundida. Para começar, é bem cômico, e está bastante ligado à performance (a linguagem corporal de Viggo e as leituras de fala de Stewart são especialmente centrais) - ele parte de um mundo físico para mostrar como este se relaciona com criação. Mais importante ainda, seus efeitos são inseparáveis do seu mundo futurista de baixa resolução. É um trabalho conceitual sobre devolver esta dimensão concreta às coisas. É questionável se atinge seu resultado, mas o esforço ainda me parece tocante e audacioso, na mesma medida.

     O crítico americano Steven Erickson foi possivelmente a única pessoa que mencionou o fato de Crimes do Futuro ser filmado na Grécia. É presumível que esta foi uma decisão financeira, considerando que o dinheiro fala ainda mais alto neste tipo de produção. Mas isto também é inseparável da poética do filme, da sugestão que faz de uma história e de um universo desaparecendo. Se Crimes do Futuro é um manifesto, ele é sobre o lugar da arte após a ascensão do mesmo mundo capitalista que sustentou a obra de Cronenberg, seja como cineasta de horror exploitation, seja como autor celebrado. De Videodrome a eXistenZ, seus trabalhos anteriores que seguiram esta veia sempre tiveram cenários decadentes, mas que ao menos sugerem um final que ainda se aproxima. Aqui, a economia destas locações gregas que representam o mundo futuro do filme faz tudo parecer ainda mais urgente. Não estamos mais chegando lá. Já passamos faz tempo, só que permanecemos em negação. Não é o corpo que decai, e sim o mundo que contém seus tipos artísticos, um mundo que parece decidido a ignorar como ele agoniza. As melhores passagens satíricas do filme vêm da distância entre a tentativa de imitar o nosso mundo artístico e o cenário decrépito. Os momentos em que o texto é elevado ao primeiro plano - como na performance do homem das orelhas - são aqueles que lidam mais diretamente com estas percepções decadentistas, e a aflição que as acompanha. É um filme perturbador, porque funciona como um espelho distorcido da maneira qual a patronagem cinematográfica opera num mundo do qual, bem ou mal, cineastas e cinéfilos não conseguem se livrar por completo (e não surpreende que as pessoas que viajaram para Cannes aparentavam estar tão prontas para recusá-lo como uma decepção).

     Há um outro filme passado na Europa, de um autor norte americano importante, que lida com muitas destas mesmas ideias: o muito mal falado Zeros e Uns (2021), de Abel Ferrara. Ambos são thrillers de arte sobre o que é visível e o que não pode mais ser capturado, cenários paranoicos de fim do mundo, passados nos dois locais de nascimento da “civilização europeia” (Itália e Grécia). São, na essência, produções de pandemia, com Ferrara usando suas cenas externas de uma Roma em lockdown como parte central do filme, enquanto a encenação de Cronenberg sublinha a maneira qual as regras de set definiram a forma de Crimes do Futuro. Ambos são previstos na repulsa a outros corpos, num movimento de perambulação e histeria constante, e eles permanecem ansiosos sobre como podem existir num mundo disfuncional. A maior parte de ambos é feita de reações insignificantes para ações e decisões que são mantidas fora-de-campo, mas contrapõe a isso a crença que sua própria existência pode sugerir uma forma de resistência. 

     A questão de financiamento permanece em suspenso e ambos também se assumem como 'de estrela', obras que só são possíveis porque seus cineastas juntam sob as lentes talentos populares o suficiente para justificar  economicamente suas existências. Zeros e Uns começa e termina com chamadas de zoom com sua estrela, Ethan Hawke - a de abertura parece uma introdução de festival mantida como parte do filme, enquanto a segunda revela que era uma apresentação para possíveis investidores, e que o seu papo sobre o grande filme que ator e diretor fizeram era baseado em conversas que sequer incluíam um roteiro formal. Por sua vez, para um longa-metragem sobre arte e criação, Crimes do Futuro é quase todo tomado por longas negociações. A arte de Mortensen pode até ser seu corpo, mas, mesmo assim, ele não escapa de uma série infinita de reuniões de negócio. As ansiedades desta duas obras em relação ao cinema ganham maior contorno através de imagens digitais cuidadosamente compostas. Eles acontecem na superfície desta textura que, tanto quanto suas ruas vazias ressonantes, abertamente reconhecem um certo caráter fisico das coisas, e também as dificuldades de apreendê-lo.

     Crimes do Futuro existe nesta série de espaços isolados e sub-populados que são mínimos, construídos de forma empobrecida - mais repleta de detalhes bem escolhidos do que por uma direção de arte rica [o design de produção parece o reverso de algo como Duna (2021)] - sua incompletude adiciona às nossas imaginações indícios de uma ideia de fim. Estamos frente ao último estágio da performance artística, e pode-se notar que a obra não é sobre o corpo doente de Viggo Mortensen, e sim sobre o próprio cinema. O filme parece sobrecarregado, por vezes paralisado, com os horrores à sua volta - o mundo pesa, e há muito parou de funcionar. Não há as mesmas saídas de emergência das quais Cronenberg lançava mão no fim dos anos 1980. Pode este cinema digital atual se aproximar dos nossos horrores? Ao longo do filme, arte, subjetividade, e a percepção deste horror são três instâncias que permanecem presas numa triangulação de forças irreconciliáveis. Ela finalmente alcança um ponto de conclusão natural naqueles planos finais de Viggo Mortensen, seu último suspiro, onde uma nova criação nasce. Porém, mais que qualquer solução possível ao impasse, o registro é o de sua agonia.

Outubro, 2022

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