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Notas sobre Carnaval Atlântida:
70 anos depois

por Pedro Henrique Ferreira

    Um dos momentos mais emblemáticos de Carnaval Atlântida é quando dois trambiqueiros se escondem no consultório de um médico, e com a ajuda da enfermeira que sonha em ser estrela de cinema, tentam aplicar um golpe num pobre professor, a quem convenceram estar sofrendo de uma doença rara. Primeiro, lhe operam banho turco para assustá-lo com o calor, mas depois que vêem que talvez estejam levando o ‘susto' longe demais, dão-lhe um copo d’água. O que não percebem é que os dois frascos do Dr. Cura-Tudo tinham os títulos de ‘soro da tristeza’ e ‘soro da alegria’. Ao tomar um, o professor chora copiosamente. Depois, dão-lhe o outro e ele ri sem parar. Embora jamais estivesse doente do corpo, a cachaça talvez curou-lhe o espírito - o professor agradece e vai embora. Os trambiqueiros não entendem nada, experimentam eles mesmo a bebida, e caem na gargalhada, culminando numa peça musical onde cantam “Cachaça”, marchinha de Marinósio Trigueiros Filho. O que parece um mero sketch cômico autossuficiente é, na verdade, uma cena determinante do longa-metragem de Burle: quando encontramos o professor novamente, ele completou sua metamorfose. Vemos-lhe sorridente a dar notícias que decidiu-se por escrever um musicarnavalesco ao invés de um espetáculo histórico para o qual foi contratado pelo magnata da Acrópoles Filmes. A cura - o soro da alegria - foi, portanto, determinante para esta transformação.

 

    1. Toda a trajetória de Xenofontes (Oscarito), de sua retesada incapacidade de falar sobre Eros, o Deus do Amor, à sua renúncia à Grécia Antiga e adesão ao samba, é um retrato da superação dos problemas da cultura nacional apontados por Paulo Prado em 1928, e Graça Aranha um pouco depois - a nossa incapacidade, àquela altura, de nos modernizarmos, por conta da nossa enraizada tristeza. O Brasil da República herdara a melancolia de seu espírito romântico reinante no século XIX, um país ‘desterrado em nossa própria terra’, com saudades do além-mar, fadado a extenuar-se com as paisagens paradisíacas, excesso de mineração e relações libidinais, que marcariam a nossa absoluta impossibilidade civilizatória. Esta visão ‘arielista’ vigente no país seria a razão pela qual a ideologia positivista das nossas primeiras décadas como nação não fariam mais que uma modernização artificiosa, fora-do-lugar. Assim, o problema a se resolver é que seriamos fundamentalmente seres tristes. “Ó pobre cultura”, responde Oscarito na introdução de seu personagem ao ouvir sua visita ser referida como ‘um cara’. O professor da Grécia Antiga é o protótipo de intelectual a ser superado, a figuração de um país que precisava se transformar autenticamente. O típico problema que os modernistas desde 1922 haviam arregaçado as mangas para enfrentar, sua ‘prova dos nove’. 

    É forçoso dizer que a chanchada foi modernista em pleno sentido, embora a estética dos decórs onde desfilavam as estrelas do rádio sob contrato da Cinédia ou da Atlântida não minta. Ela (a chanchada) o foi porque está diretamente associada à ideologia de onde a outra (o modernismo) provêm. A associação entre uma revolução no campo político (o período varguista e a ascensão da burguesia urbana e industrial que derrotou a República Velha) e outra na arte (o modernismo) ganha contornos mais claros no mecenato arquitetônico de Capanema, por exemplo, mas esta corrente ideológica que Octavio Ianni denominou de ‘capitalismo nacional’ certamente exerceu influência em outras áreas que não foram diretamente financiadas pelo Estado; e provavelmente esteve, de algum modo, presente no fervor da gênese dos nossos primeiros estúdios cinematográficos que se colocaram como atividade empresarial. No entanto, para o cinema, não bastava apenas industrializar-se. Era preciso encontrar uma fórmula para esta grande superação. Alguns outros esforços surgiram para dar feições às aspirações da ascendente classe burguesa: o modernismo de filmes como Limite (1931) ou Ganga Bruta (1933), dramas urbanos e jovens como Barro Humano (1929), os de Oduvaldo Viana ou Chianca de Garcia, ou ainda a euforia ufanista de Raul Roulien. Mas não sei, talvez todos estes ainda fossem muito, muito tristes. O signo da felicidade carnavalesca como elixir não tardaria a encontrar, na chanchada, sua mais pura expressão, e ele veio quase que à revelia da vontade dos que faziam cinema. O ‘xis' da questão é este: que o cinema industrial não poderia ser radicalmente antropofágico qual a literatura; por causa dos custos, por causa do mercado. A opção de Xenofontes pelo musicarnavalesco é também justificada economicamente ao produtor Cecílio B. De Milho (Renato Restier). De maneira irônica, Burle já havia colocado a explicação no título de seu segundo longa-metragem, Tristezas não pagam dívidas (1943).

 

    2. Ainda que de forma indireta, isto seria equivalente a repetir o que frequentemente se escreveu sobre Carnaval Atlântida - que ele encena o embate entra uma alta cultura européia/norte-americana e outra popular e nacional (isto é, quando os críticos, como Hugo Barcelos ou Pedro Lima e outros, não simplesmente o execraram por ser uma chanchada). Também, que sua dose de ‘moral da alegria’ é a réplica pacificada e institucionalizada do modernismo, dando as caras como política cultural oficialesca do governo de Vargas: aproveitou-se das estrelas da rádio em sua Era de Ouro - o veículo de comunicação e divertimento privilegiado pelo Estado Novo -, dos conhecidos sambas e marchas carnavalescas que se tornaram faceta sabida da política cultural oficial, etc. Neste sentido, a retratada Acrópoles Filmes poderia muito bem ser uma sátira das pretensões megalomaníacas dos estúdios paulistas que vinham se tornando titanics naufragados bem naqueles anos. A explicação faz sentido e contribui para situar Carnaval Atlântida ao lado do nacional-desenvolvimentismo e contra o capitalismo de interdependência, numa versão mais filosófica do embate Rio de Janeiro versus São Paulo no campo político. 

    Quando muito, se concede que Carnaval Atlântida seria uma ‘típica' chanchada, porém metalinguística e auto-consciente. Bebendo dos filmes ‘de bastidores’ hollywoodianos da época, qual A Malvada (1950), Crepúsculo dos Deuses (1950), No Silêncio da Noite (1950) ou Cantando na Chuva (1952), ele se aproveita da estrutura narrativa para comentar o embate ideológico, apontar suas características, e posicionar-se em um dos lados. O elemento popular é exaltado em detrimento do que é gringo ou elitista, a miopia da elite autoritária é evidenciada em sua incapacidade de notar a força de um modelo cultural nosso que seria ressignificado pelo Estado Novo na exaltação da malandragem, da ginga e da capacidade adaptativa da ‘raça’. Falando assim, o risco de colocar os carros na frente dos bois numa redução genérica e sociologizante da obra é muito grande. Isto porque Carnaval Atlântida é também um solene canto do cisne, último longa-metragem de Burle na produtora que ajudou a fundar e que viu o projeto de seu manifesto inicial terminar por se desvirtuar; feito no ano em que a Atlântida sofria a lástima de um incêndio (e o título original do filme, Pegando Fogo, foi alterado). O intuito, portanto, mais que uma consciente elegia do gênero deveria de ser um olhar cauteloso sobre as vísceras do que foi. E neste sentido, este pêndulo ideológico é muito mais sutil que parece à primeira vista.

 

    3. Nomes são coisas bem importantes no cinema, sua memória e esquecimento. Em Sangue de Heróis (1948), o cadete se revoltava com o general por ele esquecer sempre seu sobrenome de ascendência irlandesa; a zoeira de John Ford alinha-se ao discurso que seu faroeste constrói sobre a gênese dos EUA, lugar onde as altas patentes do exército e seus personagens mitológicos não fizeram mais que cavalgar sobre os corpos esquecidos de trabalhadores imigrantes. Não são poucas as piadas feitas com o nome de Xenofontes em Carnaval Atlântida, mas o intuito da repetição é aqui que nos lembremos. A alusão do nome do magnata a Cecil B. De Mille contribui para estabelecer o alvo da paródia, e Conde de Verdura é também dito várias vezes para enfatizar sua pretensão aristocrática. Mesmo uma Lolita adquire o codinome de 'furacão cubano' e Regina de ‘namoradinha do Brasil’. É um pouco óbvio que, no cinema, nomes são lembrados pela repetição sistemática deles, mas Burle parece fazer questão que não nos recordemos o dos pouco mencionados trambiqueiros na cena supracitada, Piru (Colé) e Lito (Grande Otelo). O IMDB, por exemplo, não os menciona, e a base de dados da Cinemateca Brasileira confunde Lito com Miro, razão pela qual a maioria das sinopses do filme repetem o equivoco. A única menção aos nomes deles é tão en passant quanto a de Hércules, namorado da secretária. A diferença é que o peso que ambos tem para a narrativa é muito maior, e que os atores que fazem a dupla são comediantes famosos. Um deles, principalmente, é (já era) um dos mais renomados atores da nossa história. Há duas razões para este esquecimento.

    Primeiro, porque a dupla traveste-se o tempo todo: como faxineiros, detetives, cartomantes, médicos, etc., e de acordo com a necessidade financeira, moldam suas figuras e assumem novos nomes (Nick Carter Jr., Sherlock Holmes III). Representam a caricata adaptabilidade do malandro brasileiro a uma realidade eternamente madrasta, dando um jeitinho aqui e acolá de ganhar uma gaita (‘se tem tutu, a gente está dentro’ repetem mais de uma vez); o tipo popular que é elevado ao status de símbolo nacional pela política cultural varguista é, em Carnaval Atlântida, uma espécie de movente oculto. Os malandros não figuram como seres diretamente centrais à trama, mas são aqueles que elucidam os caminhos, qual acontecia no filme anterior de Burle, Barnabé, tu és meu (1952). Sua contra-moeda está no outro personagem de origem popular, o 'Conde de Verdura', cujo nome verdadeiro, ‘Tobias’, também facilmente esquecemos. Mas ele é um arrivista. Difere da dupla porque seus estratagemas visam uma ascensão social, a manutenção da existência aristocrática e séria (explícita nas peças musicais de seu sonho dor-de-cotovelo).  Ao invés de malandro, ele acaba por ser apenas um farsante. Seu disfarce emana mentira (a peça musical ’deixou cair a máscara da face’ o comenta), e precisaríamos esperar mais quatro anos para que Burle fizesse justiça a um outro mentiroso que rouba o carro do patrão para ser bem quisto, em Depois Eu Conto (1956). Piru e Lito não querem chegar a lugar nenhum; são imediatistas, entre o tutu e a cachaça, alinham-se a qualquer lado e fazem um milhão de zigue-zagues para driblar a realidade que lhes oprime. 

    Depois, porque Burle comenta este esquecimento. Não é ironia que aqueles que são verdadeiramente malandros, em Carnaval Atlântida, sequer almejem uma ascensão financeira - vivem para o presente - e aceitam o seu lugar na estratificação social. O malandro, que Antônio Cândido definiu como a nossa herança ibérica, síntese do espírito revolucionário do pícaro espanhol com o conformismo burguês português, é no fundo um grande 'revolucionário passivo'. Os dois terminam de braços dados, dançando com o magnata e sambando na cara do conflito de classes. Uma vez resolvido o problema, que voltem à miséria, que voltem à faxina. A teoria da miscigenação e o mito das três raças, é claro, assim como a oficialização burguesa do malandro, também significavam uma grande conciliação de classes que o novo Brasil trabalhista propunha. A pacificação era também sinônimo da manutenção de certas regalias da elite, e Carnaval Atlântida foi lá e mostrou suas entranhas. No fundo, esta posição ideológica oficial estava promovendo um duplo abrandamento; de um lado, da violência e associação à criminalidade do malandro para integração dentro de um espectro definido como o elogioso lugar dos pobres, e de outro, o embranquecimento do negro que, igualmente, perdia suas diferenças nas grandes teses da miscigenação que substituíram o positivismo europeizante de antes. No final, tudo vira samba, mas pera lá: por mais que Carnaval Atlântida seja um espelho de toda esta política cultural, o que me parece essencial é que ele também, com muita consciência, expõe as contradições intestinais do processo. Consciência? A dada altura, Cecílio diz aos faxineiros que eles não tem esta coisa. Daí que Carnaval Atlântida talvez atue como os seus protagonistas relegados ao nada, que se fantasiaram de médico para passar uma banda no intelectual e terminaram por lhes dar o devido remédio. Enganados foram sim, mas as cartas não mentem jamais.

 

    4. De novo, poderíamos mesmo até supor que Burle não fez mais que repetir a cartilha, e que, por fazê-lo tão bem, somos nós, espectadores, é que percebemos as contradições numa leitura perversa. E daí, condená-lo pela repetição impensada das representações que faz na emulação do gênero. Seria ignorar que tem crítica na jogada. Piru e Lito dão o remédio para o intelectual, mas a bem verdade eles já deram, também, toda a resposta do longa-metragem desde a sua primeira sequência. Carnaval Atlântida começa com a dupla entregando o roteiro de um musicarnavalesco para o Dr. Cecílio, que reclama por não ser o argumento de Helena de Tróia, e os torna faxineiros. Caso lhes desse ouvido, bom, então simplesmente não precisaria nem ter filme algum! O conflito da trama só retarda sua resolução porque o magnata não vê os louros à sua frente, e precisa do intelectual para convencê-lo. Diga-se de passagem, um grupinho de quatro jovens que lhe vão convencer: o intelectual, o 'trabalhador dedicado', e as duas moças que garantem que está tutto in famiglia. A ironia não é fortuita. Os malandros precisam entregar a chave do problema duas vezes, primeiro para serem ignorados, depois, à revelia. Dentre as muitas sátiras que o filme faz, a maior delas é a do lugar do intelectual como ‘mediador necessário’ em uma sociedade preconceituosa. É por isto que é dado ao personagem de Oscarito o protagonismo e a memória de seu nome, e aos outros dois… Pois bem, que se virem. É como se assistíssemos a Rio, Zona Norte (1957) do ponto-de-vista de Paulo Goulart.

    O ponto exato que Carnaval Atlântida faz exige ainda um pouquinho mais de atenção e suposição. Piru e Lito são nomes complementares, e fica difícil pensar que Colé e Grande Otelo não sejam automaticamente associados como uma dupla no filme. Mas o fato é que nesta primeira cena do filme, um deles aceita de bom grado o lugar de faxineiro enquanto o outro chia. Lito - o negro confundido com Miro - requisita a si mesmo a postura de um artista e não poucas vezes brinca que os verdadeiros gênios não são compreendidos. É ele quem sugere a mulata do Morro da Formiga para ser Helena. E nos intervalos das filmagens, leva sua própria trupe escondida do dono do estúdio para ensaiar um filme musical que 'sonha' algum dia em fazer. É ele quem serve ao professor o soro da alegria. É forçoso dizer que há um comentário racial de Burle no tecido da obra, uma sutil denúncia do racismo implícito na estratificação social das políticas culturais e de miscigenação do período das décadas imediatamente anteriores? Não me parece. Não é preciso empunhar a carteirinha do PCB dos fundadores da Atlântida e nem seu manifesto por obras sociais para defender isto. O diretor mesmo já fizera o comentário de um jeito ainda mais frontal em Também Somos Irmãos (1949). E este mesmo Grande Otelo que aqui encarna, de algum modo, o artista sonhador… O Grande Otelo que também chiava por que, como eterna dupla de Oscarito, recebia cachê menor que ele simplesmente por racismo… teve a sua trajetória artística enaltecida em Moleque Tião (1943, originalmente intitulado Sonho de Artista), estréia de Burle na direção, primeiro longa-metragem ficcional da Atlântida, e de um protagonista negro na história do cinema brasileiro. A miopia que faz com que enquadremos obras em modelos históricos ou de gênero pode não nos conceder isto, mas Carnaval Atlântida não é um mero filme metalinguístico que elucida mecanismos e artifícios do musicarnavalesco. É uma obra revisionista dos descaminhos de uma empresa que desvirtuou-se também dos seus sonhos, e o exercício crítico de ‘por dentro das vísceras’ expôr as contradições sociais e raciais da sua época. 

 

Outubro, 2022

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