Acerca de
Sismografia de um processo
As Linhas da Minha Mão (João Dumans, 2023, MG)
por Pedro Henrique Ferreira
De modo geral, As Linhas da Minha Mão, o segundo longa-metragem de João Dumans (precedido pela co-direção de Arábia com Affonso Uchoa), é um documentário que acompanha, durante um certo período, a atriz e performer Viviane de Cássia Ferreira em uma série de encontros rotineiros que aparentam ser um tanto desconexos: um bate-papo para conjeturar em torno de perguntas lançadas por um livro de Nietzsche. Outro momento, da artista a descrever e preparar uma performance artística porvir que a ajudaria a superar a morte da mãe. Um encontro com um amigo para contar um episódio sobre um tremendo vacilo de uma funcionária do SUS, e outro para voltar-se à câmera e, na rua, falar de uma vez que fez sexo com um desconhecido em um banheiro de trem. Se, no início, a razão de ser do mosaico episódico e prosaico não pareça tão clara, aos poucos, sua personalidade vai conquistando a tela e tornando-se ela mesmo - sua presença, voz e drama (os três em um) - o assunto central do filme. São processos de construção e revelação de si.
As Linhas da Minha Mão opta por uma notável sobriedade e recursos um tanto rudimentares - no mais das vezes, uma série de close-ups de duração dilatada, dando o tempo e respiro à figura com quem o diretor evidentemente (faz-se visível no filme, embora ele não se coloque como personagem e até evite que esta interação ganhe centralidade) criou uma relação afetiva. A modulação temporal - sua estratégia blocada e estrutural - nos detêm muitas horas sobre o seu rosto numa relação bastante mundana. O jogo entre dispositivo fílmico e o ato de representação estão o tempo todo em dialética, e, por vezes ganham frontalidade temática, mas a solidez da câmera se atêm à mesma espécie de registro sóbrio, sem perder-se da camada mais imediata de observação do processo de auto-criação da sua personagem - o ato de despir-se como um 'ser' (real ou inventado) para nós, observadores. É verdade que Viviane já é uma figura incrível por si só - sua história de vida, sua consciência do mundo e aquilo que enfrenta solitariamente -, mas o risco talvez seja ainda maior por causa disto. Falo do risco que o longa-metragem enfrenta de reduzir a complexidade desta experiência pelo excesso de verborragia ou pela vontade de canalizar numa única direção o sentido de suas falas e expressões. Mesmo na performance final, o momento mais ‘estilizado' e que destoa ligeiramente do resto do filme, ele é carregado - como tudo - por um espírito dúbio de dor e apaziguamento, libertação e umbrosidade, alegria e melancolia.
Creio que a força de As Linhas da Minha Mão possa ser explicada por um dos poucos planos que não enquadra sua protagonista e nem com quem ela dialoga, o de um homem tocando uma gaita estridente, um rosto marcado emitindo uma frase melódica - a câmera se demora um pouco sobre ele. Há um tipo de poética buscada nesta espécie de registro: o close up não serve nem para pôr seu objeto contra a parede e insistir que algo venha dele, nem como moldura para uma performance pura e simples (como filme sobre uma artista, ele é mais ligado ao processo interior que produz a arte que ao seu resultado), e tampouco para fazer sonda psicanalítica dos personagens, ou fazer das suas rugas e texturas uma matéria corpórea. Não é signo, nem significante. Esta ferramenta cinematográfica tão elementar aqui opera de um jeito simples e terno, extrai lentamente, de maneira sismográfica, algo do que vê, demora-se sobre este algo até que ele também se revele como outra coisa, simultaneamente oposta e complementar ao que já havíamos visto antes. O rosto mostra mais as dúvidas (ir à frente como pastor, gênio ou desertor?; ser genuíno ou não?) que as convicções. No homem da gaita habitam ao mesmo tempo doença e sanidade, uma performance artística e uma banalidade cotidiana, aquele tipo de verdade contraditória que o cinema, mais que as palavras, pode cristalizar; mas que, ao mesmo tempo, é necessária grande maturidade para poder fazer acontecer.
Talvez a verdadeira beleza de As Linhas da Minha Mão seja o fato de que o libelo contra a normatividade psíquica e o elogio da arte como elixir da histeria ou das neuroses que a sociedade moderna e capitalista nos impõe (e ao mesmo tempo nos obriga a disfarçar) não venha simplesmente proferido numa performance auto-indulgente, onde a transe perde todo o seu verdadeiro poder subversivo para se tornar um clichê de frases prontas, uma encenação retilínea do manual da boa moral libertária e narcísica (e quantas vezes o cinema contemporâneo não cai nesta armadilha); e sim, pela singela observação de um rosto que contêm todas as contradições por trás do processo, que porta ao mesmo tempo a doença e seu potencial de cura, e nos revela o quão incrível é a figura que o supera, mas também o quanto ela sofre com isto. É fácil falar de delicadeza e afeto, fácil também simulá-los, mas difícil é realmente conquistá-los. O filme de Dumans faz um movimento revelador para o momento pós-pandêmico neste sentido, pois a terna aproximação que ele promove - a aproximação entre plano e a face - não é a cura psicanalítica da personagem, mas, em algum lugar, num filme de tom menor e nada apoteótico, uma vontade de escuta importante para o próprio mundo. O plano pousa e se demora sobre o rosto dela (e dos outros) com a mesma suavidade impávida, o mesmo senso de familiaridade, que um pássaro pousa no telhado da casa toda manhã. O tempo passa e todas as nuanças deste rosto vão se revelando, mostrando-nos suas vitórias e derrotas, inseguranças e coragem, um teor complexo e uma miríade contraditória amalgamado numa única e mesma imagem. A esta altura, já não importa se o que vemos é encenado ou não. O sentimento que ali brotou é verdadeiro.
Janeiro, 2023