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Galáxia e o Catálogo: um diário da Longa Viagem do Ônibus Amarelo

A Longa Viagem do Ônibus Amarelo
(Júlio Bressane e Rodrigo Lima, 2023, Brasil)

por Leonardo Bonfim

TUDO COMEÇA PELO FIM

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Na terça-feira, 31 de janeiro, motivado pela chegada de uma amiga que encarou um trem noturno só para assistir ao filme, decido refazer a longa viagem do dia anterior. A revisão das imagens ajuda a organização das ideias. Os rabiscos quase incompreensíveis, anotados no calor da sala escura, agora parecem mais coerentes. As memórias estão vivas. Dá pra começar.   

 

O MAPA ANEDÓTICO

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Olho o mapa. Descubro que a viagem de ônibus para a Holanda tem quase a mesma duração do filme. Um pouco menor, para ser preciso (6h40 contra 7h12). O destino cumpriu seu papel e adequou tudo, inclusive o preço do bilhete. Em alguns dias chegarei a Rotterdam para ver a estreia mundial de A Longa Viagem do Ônibus Amarelo (2023), o mais aguardado filme de Julio Bressane e Rodrigo Lima.

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BRESSANE INFINITO

 

Na linha reta interminável da estrada, lembro de duas ocasiões em que o cinema de Julio Bressane ensaiou tornar-se infinito. Certa vez, em uma sala situada dentro do cofre de um antigo banco em Porto Alegre, uma sessão de A Família do Barulho (1970) se transformou em um evento extraordinário. Moldado a partir da referência oswaldiana, o filme apropria-se da ideia da “contribuição milionária de todos os erros” para colocar em cena todo o material filmado, incluindo os erros dos atores, as repetições de cenas, as claquetes... Nesse dia, tudo foi potencializado por outro erro: o da projeção. A cópia exibida parecia vir de um DVD arranhado. O resultado foi um vai e vem de cenas, repetições das repetições, cortes bruscos e aquela narrativa subversiva da família tradicional belairiana encalacrada em um labirinto. Lá pelas tantas, quando a duração já excedia muito o previsto, uma funcionária do cinema cochichou no meu ouvido (tinha sido convidado para participar de um debate): “tem alguma coisa errada, não?”. A exibição foi interrompida e a versão sem fim de A Família do Barulho acabou como não poderia deixar de ser, antes do fim. Naquela noite, caminhando pelo centro escuro da cidade, lembrei de outra experiência surpreendente com o universo de Bressane, anos antes, também motivado por uma situação imprevista na cabine de projeção...  Na mesma sala! O festival Cine Esquema Novo havia programado lá as raríssimas transcriações cinematográficas da obra de Haroldo de Campos. No fim do programa duplo que reunia Galáxia Albina (1992) e Infernalário: Logodédalo - Galáxia Dark (1993), uma surpresa: Cary Grant sozinho à beira da estrada. Fazia parte do filme? Em um corte, a espera do personagem deu lugar a outra, a de Alain Delon na Itália. Uma cena de O Eclipse (1961). E assim foi, sucessivamente, até que as luzes se acendessem: Hitchcock, Antonioni, Hitchcock, Antonioni... A sessão passou quase uma hora do que estava anunciado no programa e ninguém entendeu nada. Tempos depois, descobri que aquela montagem pedagógica que surgiu do nada após as galáxias era um filme e se chamava Antonioni - Hitchcock: A Imagem em Fuga (1993). Acabou exibido por uma distração do projecionista (ele dormiu, foi embora, quis fazer hora extra?) que deixou a fita beta – aparentemente compilava diversas preciosidades do início dos anos 1990 – rodando até o fim. 

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Anoto duas vezes porque o óbvio é o que mais se esquece. As memórias na estrada evocam não apenas a possibilidade de que um filme de Bressane nunca acabe, mas também o motor inicial do Galáxias (1984) de Haroldo de Campos (a viagem como livro e o livro como viagem) e a revisão de imagens a partir de uma aventura criada na sala de montagem. 

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MONSTROS E BUBBALOOS 

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Chego em Rotterdam no domingo, 29 de janeiro, véspera da estreia. Busco na programação, assumindo que a obsessão é a irmã vaidosa da expectativa, alguns filmes que possam aquecer a viagem programada para a manhã seguinte. Encontro LOLA (2022), ficção-científica irlandesa de Andrew Legge que especula, a partir da ideia do manuscrito encontrado (rolos de filmes em 16mm), muitos mundos possíveis: a Segunda Guerra pode ter seu percurso alterado, You Really Got Me, dos Kinks, pode-se tornar um hino feminista nos anos 1940, David Bowie pode ter se tornado um dentista e jamais um artista, a ilha britânica, nos anos 1970, um reino nazifascista... Vejo uma pequena joia, Mudos Testigos (2022), idealizada pelo saudoso Luis Ospina, concretizada após sua morte por Jerónimo Atehortúa Arteaga, que inventa um melodrama insólito apropriando-se das narrativas de filmes silenciosos colombianos. E, no fim da noite, uma sessão de curtas e médias intitulada Revelations and Jest programada por Olaf Möller, que apresentou, entre outros, Nitrate: To the Ghosts of the 75 Lost Philippine Silent Films (1912-1933) (2023), de Khavn de la Cruz, jornada distorcida através de fragmentos do cinema fantástico filipino dos anos 1950-1970, e o brevíssimo The Hidden Gesture. War and Melodrama in Hollywood's 30s and 40s (2023), dirigido pela crítica argentina Dana Najlis.

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Entre o manuscrito fílmico encontrado, os mergulhos em cinematecas e o abraço aos VHSrips, muitas ideias polvilham na cabeça. A mais atormentada é sobre a desigualdade: o belo filme de Najlis é fruto de um trabalho de quem pode ver e rever – e consequentemente pensar e repensar – muito bem alguma coisa. O de Khavn, por outro lado, revela sua razão de ser na própria monstruosidade da imagem: quando o detalhe é inacessível, escancara-se aquilo que está na superfície. Pode-se imaginar a lupa que a realizadora argentina põe sobre as obras norte-americanas dos anos 1930 e 1940, deslocando planos de suas obrigações narrativas, a fim de evidenciar os detalhes  escondidos  desses gêneros muitas vezes encarados de maneira antagônica, mirando o acervo filipino? Escancararia ainda mais os pixels, os borrões e as outras deformações visuais das cópias de quinta geração que parecem ter sido telecinadas pelo próprio diabo. Vistas depois das imagens cristalinas do cinema clássico hollywoodiano, essas criaturas disformes naturalmente me fazem pensar no drama da preservação cinematográfica espalhado pelos quatro cantos do planeta. Como um contracampo da ressureição iluminada de figuras divinas, há os zumbis apodrecidos que relembram a cada dia, num lamento contínuo, a maldição vivida por cinematografias inteiras.

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Naquele momento, ainda não tinha visto os créditos iniciais de A Longa Viagem do Ônibus Amarelo. Descobriria, na manhã seguinte, que o filme é co-produzido pela Cinemateca do MAM do Rio de Janeiro.  

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JACKIE

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Fim da noite de domingo, rua Westblaak. Para o azar dos crossfiteiros de festivais, uma mulher fuma tranquilamente seu cigarro e enche de fumaça a entrada de uma das salas de cinema. É Jackie Raynal, montadora, cineasta e atriz ocasional, uma das cabeças do coletivo Zanzibar, que emergiu no cenário francês no meio dos incêndios de 1968. Com uma simpatia transbordante, passando dos oitenta anos, fala do tempo em que os convidados de Rotterdam ficavam hospedados em barcos. Penso, antes de dormir, que uma bela programação poderia reunir essas gerações imediatamente posteriores que radicalizaram suas respectivas “ondas” modernas no fim dos 1960, em países como Argentina, Índia, França, Japão, Itália, Iugoslávia, Brasil... No set list, Edgardo Cozarinsky, Mani Kaul, Jackie Raynal, Masao Adachi, Carmelo Bene, Zelimir Zilnik. A abertura ideal para essa mostra dos sonhos: O Anjo Nasceu (1969).   

 

ANONIMATO

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Segunda-feira, 30 de janeiro, 10h45 da manhã, em uma sala de cinema situada numa ruazinha perto do bairro chinês. Elena Duque, cineasta e programadora venezuelana radicada na Espanha, convida os diretores para a apresentação do filme. Entre as promessas e previsões, Bressane diz (ou dirá depois, já no debate, não lembro bem) que “esse é um filme feito de imagens anônimas.”  

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ERA UMA VEZ...

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No começo de tudo, o silêncio total e as panorâmicas tranquilas no norte do mundo: carruagens, carros, pontes, parques, os prédios novaiorquinos. Os cortes soam como estalos discretos. Montagem feita na própria câmera ou realizada agora para o novo filme? A passagem de uma imagem a outra é de 1959 ou de 2023? Nos minutos iniciais da viagem, a primeira curva sinuosa: a impressão de assistir a uma obra realizada paralelamente em tempos diferentes. Não há (e não haverá) explicações de contextos ou datas. Contra a lei dura das informações, surge uma cadência hipnótica que espalha uma inquietação macia no mapa mental de quem vê – inclusive porque faz e desfaz diversas linhas cronológicas ao longo da jornada. Um novo estalo, um novo mundo: as nuvens e as montanhas, vistas de um avião, indicam um deslocamento geográfico. As roupas descansadas, o cachorro serelepe, os paralelepípedos tropicais anunciam o Brasil, lugar naturalmente especial e luminoso dessa história.   

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No reconhecimento inicial das perturbações, a recorrência de uma imagem dissonante entre aquelas que eternizam com algum fervor o diário de viagens. A câmera é virada para o rosto daquele que filma: eis o homem. Ou melhor, o garoto! Cara a cara, o olho mecânico da super-8 e o olho brilhante do adolescente parecem estabelecer uma conexão mágica. 

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As imagens são anônimas – ele dirá décadas depois dos autorretratos instantâneos – porque ninguém as vê. Não é o caso de cair na armadilha de pensar em uma contradição genial do jovem entusiasmado (pelas musas do mundo ou pelo milagre da câmera?) que deseja assinar suas primeiras criaturas. Esse gesto recorrente, no frisson dos anos dourados, faz pensar no fascínio de tornar-se imagem, mas não somente – para virar imagem, afinal, a câmera poderia ser deixada nas mãos de outra pessoa da família. Mais do que isso: em uma ação simples, revela-se um reverso, um atrás, um fora da imagem, e imprime-se essa subversão de rotação na própria película. Na hora da projeção, o cara a cara ganha outra dimensão. Os olhos de quem vê, forçados a assumir um disfarce dentro da cena, são convocados a participar da conexão reveladora. O diabinho sussurra: esse gesto não se repetirá, de muitas formas, ao longo de toda a obra de Bressane? O traço essencial não está aqui? 

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O gesto marcado já no abre-alas deixa ao menos uma certeza. O fato de que esse é um filme dedicado não à vida de, mas a uma vida de, aquela construída em conjunto com essa bela máquina feiticeira em encontros permanentes. A longa viagem começa com a primeira filmagem. 

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TERRÍVEL NOTÍCIA

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Da banda sonora de Cleópatra (2005) vêm as primeiras palavras ouvidas no filme. 

“Que terrível notícia, Fúlvia está morta”.   

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A MINIATURA

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Os caminhos se bifurcam enquanto a viagem ainda encontra sua forma. Os diários filmados e as cenas da vida privada ganham a companhia das imagens célebres do universo ficcional. E também de seus reversos reveladores. Na entrada de um edifício, a voz que está atrás da cena pergunta a Roberto Batalin se algum cineasta brasileiro já caiu daquela escada. É a senha para que a viagem se transforme em um grande passeio pela filmografia de Bressane com variações sobre o mesmo tema: inúmeros sobes e desces em escadas que atravessam décadas, de Cara a Cara (1967) a Capitu e o Capítulo (2021).   

 

Soando como uma legítima abertura operística, esse momento de introdução percorre todos os temas da longa viagem em um tipo de miniatura – as sublimes obsessões, as propostas de montagem, as relações com tempos e espaços, a revisitação das ficções, o deslocamento dos planos em relação às suas narrativas, a conversa heterogênea entre imagens de origens diversas. A sugestão da minissinfonia de imagens no começo de tudo sugere também uma consciência de que os olhos grudados na tela já estão seduzidos por um grande mistério. Uma das amigas de Matou a Família e Foi ao Cinema (1969) caminha em um corredor atraída pelo segredo de uma porta. O protagonista de Barão Olavo, o Horrível (1970) surge aos passos cuidadosos, possuído pela intriga, em seu castelo colorido. Essas “miniestórias que articulam e se dissipam com o suspense de uma novela policial” espelham a minha vontade diante da minissinfonia de abertura. Fico com a impressão de que a organização narrativa da longa viagem tem como modelo a ideia de um enigma forjado por um enorme corredor com uma infinidade de portas abertas.   

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O suspense construído pela (e para a) imagem também confirma aquilo que havia sido vislumbrado com os filmes de arquivo da noite anterior: a viagem de Bressane e Lima (e a de todos os tripulantes) é uma aventura que perpassa diversas texturas visuais: os grãos convivem com os pixels, as películas restauradas convivem com as películas estouradas, o digital brilhante convive com o digital esmaecido, o found footage convive com o lost footage. 

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NO NEPAL TUDO É BARATO

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Após a minissinfonia, o mergulho nos anos 1970. O alarme dispara em cada imagem. Onde foi parar o Cinema de Invenção, interrompido por forças sinistras em seu momento mais inspirado? Fragmentos sobreviventes inspiram as suspeitas: na marmita de Andrea Tonacci em algum recanto indiano, no sorriso aberto de Elyseu Visconti em algum lugar do mundo, no Guará Rodrigues que cozinha com uma perna só em algum muquifo londrino. As imagens silenciosas desse período de viagens mil transparecem o tempo todo o compartilhamento caloroso de solidões. Entram em cena pedaços de filmes pouco ou jamais vistos (talvez nem todos agora, mas minha memória quer incluí-los aqui): Crazy Love (1971), A Fada do Oriente (1972), Lágrima-Pantera - A Míssil (1972)... O exílio que mais interessa nesse trecho de A Longa Viagem é aquele que menos assemelha-se a narrativa. Não há estrangulamentos, nem conspirações de assalto a bancos, mas os vestígios silenciosos de uma comunidade viajante. Esses brief glimpses of beauty no exílio são formados por uma coleção de rostos, mãos, sorrisos, de amigos e de desconhecidos, de brasileiros e estrangeiros, de paisagens discretas e locais sagrados. Os benditos furtos indicam uma disposição etnográfica, mas não escondem o arrebatamento maior: eternizar em imagens o mergulho mais profundo, a história de amor com Rosa Dias.  

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Nos créditos finais, A Longa Viagem do Ônibus Amarelo aparece referenciado como um filme realizado em 1972. A viagem aconteceu de fato, inspirada em uma rota turística-psicodélica que saía de Londres, na Inglaterra, e chegava em Darjeeling, na Índia. Esse filme, ausente dos catálogos mais completos do seu cinema, existiu concretamente ou apenas em sonho? A essa altura, uma resposta precisa pouco interessa. Mais valioso do que saber das informações exatas sobre a sobrevivência de alguns minutos de um material quilométrico é reforçar a impressão delirante do começo. Um filme pode ser dois filmes em paralelo: um realizado nos anos 1970 (nunca finalizado, nunca visto, apenas imaginado?) e outro nos anos 2020 (que parece estar sendo imaginado e não visto e que talvez nunca esteja finalizado de fato)   

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NAS PAREDES DA PEDRA ENCANTADA

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O expresso do oriente encontra o mistério do agreste paraibano. As pedras, grandes vedetes dos registros pessoais do diretor (nos filmes de juventude as paredes das construções já parecem assombrar a máquina amadora), tornam-se protagonistas de vez. O movimento da câmera que muitas vezes deseja tatear superfícies sugere a relação com um olho voraz, quase ansioso, e um pincel em ação que urge inscrever alguma coisa ali. Em Ingá dos Bacamartes, décadas antes de São Jerônimo (1999), Bressane vai além e, em busca das promessas de Antônio Vieira, descobre o canto arranhado da pedra encantada ao roçar o microfone nas paredes decoradas pelos desenhos rupestres (nota do editor – é o mesmo sítio arqueológico que inspirou Zé Ramalho e Lula Côrtes a gravar, naqueles mesmos verões lisérgicos, o disco Paêbirú). Mais pedras sobreviventes de outros tempos e novas construções míticas serão celebradas. Uma das mais belas: o rosto de Grande Otelo, absolutamente imóvel, surge como um grande e brilhante rochedo. Nesse devaneio mineral da jornada mágica, uma nova presença é anunciada. A serpente admira a barriga de Rosa Dias. A primeira filha, Tande, a partir de agora faz parte da viagem. Com uma anarquia ruidosa que acaba com o sonho quase silencioso, a criança deixa claro que se o anjo enfim nasceu, ela é uma espécie torta que desafina o coro dos contentes e imprime cantigas violentas em alguma paisagem sagrada do mundo. Outros virão: Noa, a segunda filha, os netos... A cada plano em que aparece alguma parte da grande família que Rosa e Julio montam ao longo dos anos –  para muito além da consagração sanguínea – uma voz de fora do filme soa como se houvesse um alto-falante na sala de cinema: “cuidado que a gente morde!”

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FILME DE AMOR

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A família que está na tela também está sentada nas poltronas da sala de cinema.  

 

DE REPENTE, ACIDENTE

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A imagem de um relojoeiro trabalhando, em uma textura digital, quebra o fluxo da trip setentista. Uma interrupção inesperada acaba de vez com a magia: a imagem congela na tela grande e uma jovem holandesa com um notebook nas mãos avisa em inglês que haverá quinze minutos de intervalo (e que depois haverá mais dois!). Bressane levanta-se rapidamente, visivelmente incomodado, e questiona a decisão: “pararam o filme no meio do plano!”  

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Não qualquer plano, volto a ele mais adiante. 

 

O pequeno entrevero é rapidamente resolvido. A longa viagem retorna, depois do intervalo forçado, na cena já vista que acompanha pacientemente o senhor que conserta as minúcias de um relógio. Ao rever o plano do tempo quebrado nesse contexto turbulento, impossível não pensar em algo que havia desaparecido desde que as primeiras luzes começaram a ser projetadas. Não tenho (e nem desejo ter) a mínima noção de quantas horas já passaram. A viagem seguirá sem novos acidentes até o fim e a neurose do tempo seguirá ausente. O que está presente, em contrapartida, é um tipo raro de sedução do tempo. O transe absoluto é fruto de uma concepção musical de montagem de Rodrigo Lima, que conduz a viagem com a tranquilidade dos grandes hipnotistas. E assim será até o fim.  

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A REGRA E A EXCEÇÃO

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Delicadeza não significa monotonia. Sem muito alarde, a aventura do filme assume a faceta de um jogo. Ou muitos. Um deles: atravessar toda a filmografia de Bressane, em ordem cronológica, a partir de uma cena em plano-sequência de cada longa-metragem. Nesse rio sequencial, há imagens muito célebres, outras quase desconhecidas. A estrada sem fim de O Anjo Nasceu inevitavelmente me faz querer rever o filme já, mas a vontade passa assim que as outras feras aparecem: Maria Gladys e Helena Ignez em cores estridentes caminhando em uma Sá Ferreira ensolarada; Guará, em 16mm granulado estrangulando quatro loiras em um parque londrino; Helio Oiticica e Cildo Meireles em preto e branco contrastado armando um plano para assaltar um banco enquanto as odaliscas do lower east side dançam e namoram; Grande Otelo aparecendo nas grandes pedras em frente ao mar; Carlos Imperial se arrastando na beira do mar com uma faca enfiada nas costas; Jece Valadão perseguido pela sombra do homem com a câmera nos escombros da Cinédia; Quincas Borba encontrando Brás Cubas; Padre Antônio Vieira encontrando a morte; Nietzsche recepcionando a sua alteza; Alessandra Negrini desmaiando no cemitério; a estátua de Fernando Pessoa enquadrada à la Ruiz a partir do reflexo da água em uma taça; Mariana Lima conversando com o papagaio... O jogo desse pequeno grande filme dentro do filme faz com que um admirador delire entre a expectativa e a adivinhação: que imagem virá a seguir? O que verei de Tabu (1982), de Miramar (1997), de Filme de Amor (2003)? A regra encontra suas exceções e desperta o sonhador: alguns filmes têm mais de uma cena, nem todas são plano-sequência, a ordem cronológica pode ser quebrada.

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A sequência, para além do divertimento saboroso no coração da viagem, me faz pensar em todas as etapas de uma filmografia: a ruptura com o Cinema Novo, os hits marginalizados, o mergulho oswaldiano na Belair, os filmes do exílio, o retorno do exílio, a entrada em cena de outras línguas portuguesas (a ironia visionária machadiana, os sermões das estrelas, as traduções de pensamentos originais em outros idiomas), a invenção de uma contracultura no colo da Retomada, a fase “boy meets woman” intensificada nos anos 2010... Nesse raro momento em que o filme delineia uma sombra biográfica, o aspecto compulsivo da sequência de imagens transforma o sonhador em um guloso implacável. Quero rever tudo agora, mas especialmente aquelas obras menos projetadas nas salas nos últimos ano, como O Rei do Baralho (1975), O Monstro Caraíba (1976), A Agonia (1977), O Gigante da América (1979).  

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AS MEDALHAS DO FILMADOR

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O primeiro plano de Cara a Cara na sequência cronológica de cenas enquadra o personagem de Antero de Oliveira absolutamente diminuto em um enorme arquivo bibliográfico. É o tal plano que foi interrompido no meio para o intervalo forçado. Essa cena surge como um prenúncio do que está à espreita: a viagem toma outro rumo, algo que se assemelha à construção de um enorme catálogo de imagens recorrentes.  

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Esse plano, escolhido entre tantos possíveis do longa-metragem de estreia, não seria um autorretrato de Rodrigo Lima em seu trabalho minucioso de investigação das reincidências na imensidão de imagens criadas ao longo de várias décadas? Ou, virando a ampulheta, um autorretrato de Julio Bressane, pesquisador incansável da história das formas, diante da multidão de signos cinematográficos que, nesse tempo todo, almejaram o caminho sem volta que é a inscrição na película? Se esse filme me parece ser sempre mais de um filme ao mesmo tempo, é natural que um autorretrato possa sugerir, simultaneamente, a representação de dois criadores diferentes. O trabalho de organização e reorganização de um acervo, afinal, é compartilhado pelos dois cineastas: como catalogar uma galáxia e não ser engolido? No plano seguinte, a vitória é anunciada com pólvora e sangue. Em uma continuidade destruidora, o mesmo Antero de Oliveira – em outro filme dos anos 1960 (mas no mesmo filme de 2023!) – entra em casa, mata seus desafetos barulhentos e finaliza a performance dançando sozinho um tema irreverente de Lamartine Babo. A galáxia começa a rasgar a fantasia do catálogo e os dois diretores, novamente em um autorretrato duplo em cena, celebram o carnaval: “a vida é assim, a vida é assim, o pranto é livre e eu vou desabafar!”  

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É nesse momento, quando as armadilhas de um inventário gelado são desviadas de maneira gloriosa, que o filme parece reivindicar de vez sua filiação ao Galáxias. Penso na passagem de uma palavra a outra na obra-prima de Haroldo de Campos, no modo como cada sílaba parece saltar da página, diante da impressão vertiginosa das continuidades e descontinuidades entre imagens vizinhas na revisitação do universo bressaniano. As rimas tortas, os ecos em um milhão de timbres e as repetições quebradas emolduram a coleção de hidden gestures (mas nem tanto) filmados ao longo de décadas. Há a sugestão de “um começo, um recomeço, um remeço e um arremesso” nas sequências de espelhos, de esqueletos, de claquetes, de imagens da rua Aperana, de movimentos reversos, de “todos os erros”, das canções, das danças, das vulvas, dos falos, das línguas. Nessa sucessão de cantos galácticos, onde vê-se unidade temática, pode-se ver também uma multiplicidade exuberante de formas. Atraída pelos mesmos temas, a câmera de Bressane encontra seu estilo a partir da complexidade: enquadra, desenquadra, superenquadra; se aproxima, se distancia, emoldura, deforma; dança com, ignora a dança, acompanha os atores, avança contra os atores; revela epifanias, contempla antiepifanias... 

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Dentro dessa grande pulsão haroldiana, outros santos padroeiros são convocados. Na relação entre unidade e multiplicidade, um borgianismo flagrante deixa claro que o mesmo pode tornar-se diferente sem jamais deixar de ser o mesmo; na relação entre o caos da galáxia e o cosmos do catálogo, o nietzchianismo apresentará de maneira literalmente teórica, a partir de uma cena pinçada de Dias de Nietzsche em Turim (2001), as concepções acerca dos dois impulsos artísticos: o apolíneo e o dionisíaco. E assim, entre a regra e a errância, A Longa Viagem intensifica uma busca incessante desde os primeiros dias, ainda nos anos 1960: a de libertar o plano do calabouço da narrativa. De novo o Galáxias: um depois um depois um outro outro um depois um outro... Quando a narrativa vem, e muitas vezes vem com gosto, ela é enunciada em sua íntegra por um personagem em um só plano. Um exemplo sobrenatural: a cena de Beduíno (2018) em que Alessandra Negrini narra, enquanto desliza no ar, os infortúnios de uma mulher que se parece com outra já morta. 

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O GESTO AMADOR

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Um dos trechos assombrosos do filme, a passagem de uma cena de O Monstro Caraíba em que Wilson Grey desperta Carlos Imperial aos gritos (“acorda, Brasil!") para a outra, que documenta a perplexidade do neto com uma aranha fictícia no banheiro de casa, provavelmente filmada com a câmera de um telefone celular. Impossível não imaginar o turbilhão tomando conta da cabeça de Lila Foster, que pesquisa o gesto amador no cinema de Bressane, assistindo a tudo isso.  

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BOM DIA, LINGUA

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Na apresentação da sessão, Bressane diz que o filme reúne “vinte e sete figuras de linguagem” de seu cinema. Sua obra desde sempre nos lembra que palavra não resolve virar imagem e sai dessa impunemente. A ideia de uma adaptação jamais pode ser literal porque nessa transcriação entre diferentes expressões artísticas, há sempre uma relação de perdas e ganhos, o suficiente para que tudo se transforme. Levando em consideração essa (im)possibilidade criativa, penso no que poderiam ser as figuras de linguagem de um cinema? Refazer a longa viagem é essencial para que se possa delirar no lugar apropriado, a sala escura, e imaginar algumas bobagens inspiradoras: o que é a hipérbole, a antítese, a personificação, o paradoxo, entre outras aventuras figuradas, no universo bressaniano? 

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Enquanto o lobo da revisão não vem, outras ameaças dão as caras. Barthes, na sua lendária aula inaugural ministrada no College de France, em janeiro de 1977, chuta a porta na introdução do curso de Semiologia e poucos anos antes de sua morte cria o seu próprio Salò linguístico. O poder – anuncia para os estudantes – é um parasita de um organismo trans-social e está inscrito, essencialmente, na linguagem e em sua expressão obrigatória, a língua. Entre a “autoridade da asserção” e o “gregarismo da repetição”, a língua não é nem reacionária, nem progressista: é fascista. O fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer. Ao iluminar um caminho de liberdade, ainda que com os pés no chão, ele argumenta que só nos resta trapacear com a língua e trapacear a língua. Essa esquiva salutar, conclui o mestre ocasional, nos permite ouvi-las fora da servidão e do poder em que estão confundidas, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem chamada: literatura.   

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Assumindo o risco, penso na tradução de angústias do repertório literário e visualizo uma transcriação das problemáticas e das soluções em relação aos vícios de linguagem do cinema. Imagino uma das ideias mais célebres da aula de Barthes na voz de Bressane, como um ponto de partida para uma revolução cinematográfica sem paralelo em nosso território: o que fazer quando nunca posso filmar senão recolhendo aquilo que se arrasta na imagem cinematográfica? Abraço definitivamente a ficção e então posso ter a certeza de que foi exatamente isso que o adolescente com os olhos brilhantes no outono novaiorquino mentalizou no cara a cara com a sua primeira máquina de filmar. 

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Outra correspondência francesa, por ocasião fúnebre, aparece no horizonte da linguagem. Paul Vecchiali, o morto mais sentido das últimas semanas. Não foi ele, embora sendo de outra geração, aquele que teve maior afinidade existencial com o cinema de Bressane? Cada um com a sua chanchada, cada um com a sua paixão pelo moderno invisível de seus países, cada um com o seu estrangulador de loiras (ao mesmo tempo!), cada um com a sua maneira de transformar um boy meets girl aparentemente simplório em um batuque dos astros. Já que estou tomando liberdades irresponsáveis, arrisco também uma frase clássica de Vecchiali na boca de Bressane: “costumo dizer que tenho o coração nos anos 1930 e a cabeça na Nouvelle Vague.” Nos obituários espalhados pelas redes sociais, leio que o diretor francês deixou um último filme pronto. Chama-se Bom dia, Língua e é uma homenagem a Jean-Luc Godard.  

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ROSA LA ROSE

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Como não amar um filme que me faz ter saudade de muitas imagens ainda durante a projeção? O longo trecho dedicado a extirpar a galáxia da costela do catálogo minimiza a recorrência das cenas familiares. Talvez seja uma reconfiguração dessas cenas na forma de ficção. Mas não tem jeito. Sinto saudade, por exemplo, da suave persona de Rosa Dias nas peregrinações setentistas. 

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É com a morte de um pai que a longa viagem arrebenta as algemas do jogo do catalogar. Uma curva inesperada vem com imagens na Itália que documentam a visita ao túmulo de Antonioni. Em seguida, num golpe mágico de montagem, de quem advinha onde quer estar o brilho dos olhos de quem vê, o filme recupera uma imagem que parecia ter ficado para trás. A Rosa dos anos 1970, de pé e imóvel, é cortejada pela câmera de Bressane. O olho amoroso do filmador se aproxima, se distancia, a envolve, cheira os pés, beija o torso. Um corte discreto revelará outro corpo em um enquadramento semelhante: os pés de Maria Gladys são cumprimentados pela câmera em A Agonia. Logo o seu caminhar marcante se tornará uma nova imagem: Jece Valadão andando na estrada em O Gigante da América

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A admirável sequência das três imagens me faz ter certeza de que por trás da aparente elaboração de uma grande coleção, há também uma vontade de evidenciar a sucessão de metamorfoses. E então vem o óbvio: se existe saudade, é porque há presença. Antes do fim da viagem, uma enorme alegria, dar-se conta de que Rosa está o tempo inteiro aqui. Nas cenas em que aparece, é claro, assim como em metamorfoses mais literais (nas filhas, nos netos, em Nietzsche, nos amigos que compartilham erotismos num apartamento), mas também em imagens aparentemente distantes – no caboclo que foge do inferno, no homem à margem da civilização que estrangula loiras... Lembro então de palavras que aparecem lá no comecinho, uma fala da personagem de Garoto (2014) que invade a banda sonora da longa viagem: “eu conheço uma mulher, ela me ajuda, me ajuda bastante, há muito tempo ela é legal comigo, ela é diferente, é bem diferente, vamos até a casa dela”. Esse filme é a casa dela.

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UM CLICHÊ

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As luzes da famosa torre piscam em uma noite escura. Vem o pressentimento de que a viagem está perto do fim. O neto adolescente e os avós caminham pelas ruas de Paris. As máscaras datam as imagens com a marca da peste. Esse novo deslocamento, que põe o filme de vez nos nossos dias, seduz a memória cinéfila e abre o escaninho do clichê. Em uma banda sonora imaginária, escuto na sala de cinema a voz de Humphrey Bogart com todo aquele charme indecoroso: we’ll always have Bressane. Escuto mais uma vez: we’ll always have Bressane. Outra: we’ll always have Bressane. Nos dias seguintes, a frase segue repercutindo, mas com uma variação, uma significativa mudança no tempo – na verdade nós sempre tivemos Bressane! A explosão das estrelas nas mil e uma noites de A Longa Viagem do Ônibus Amarelo também inspira uma constatação fundamental: trata-se do único cineasta de invenção da nossa história (e dos únicos entre aqueles que não vivem nos centros ricos do mundo) que filma praticamente sem interrupções desde o começo de sua trajetória. Há obras-primas dirigidas por Julio Bressane nos anos 1960, nos 1970, nos 1980, nos 1990, nos 2000, nos 2010, nos 2020. Impossível assistir a esse filme e depois não querer sair para tomar um goró com os outros cúmplices da viagem.    

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O MOVIMENTO DOS BARCOS

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A lua cheia aparece entre as nuvens da noite, uma figura estrangeira entre as repetições variadas das medalhas de linguagem do filmador. Talvez ela apareça no desfecho para lembrar duas coisas: que Bressane é um diretor incrivelmente diurno; e que depois de um milhão de cenas, há um aviso esperançoso, um tipo de “você ainda não viu tudo” que provoca o desejo por novas imagens – sabe-se que já existe um novo longa-metragem filmado, O Leme do Destino. Na última curva, a metamorfose definitiva: a noite agora é o rosto de Rosa Dias, que navega pelo mediterrâneo com a companhia da câmera de Bressane nos tempos do Yellow Bus. O que ela imagina ao fitar o horizonte no mar do Marrocos? Que um dia essa trip inspirará outra trip que perpassa mais de 400 minutos, 60 anos, quase 40 filmes, os amigos, as filhas, os netos e tantas vidas? No último encontro, o mais belo um em dois desse filme. La mére e o mar, a matéria das imagens dançarinas e a mater-comparsa da grande viagem. No “livro rigoroso e gratuito”, o amor aponta o caminho da invenção. No fundo do sorriso, as águas selvagens balançam passado, presente e futuro e, sintonizando o movimento dos barcos ao movimento da galáxia, revolvem também a nossa mais inspiradora maldição, aquela que nos obriga a sermos experimentais ou não sermos coisa alguma. 

 

 

Abril, 2023

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