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Palavras cruzadas

A Vida são Dois Dias (Leonardo Mouramateus, 2022, RJ/CE)

por Pedro Henrique Ferreira

               A Vida são Dois Dias funciona um pouco na fórmula matemática que o título coloca, o sujeito no singular e o predicado no plural; um como dois, dois como um. Do mesmo jeito que Romulo e Orlando, os gêmeos, são nomes parecidos o suficiente, ao ponto de podermos traçar um círculo de união e interseção com suas letras, são também duas pessoas diferentes, uma que vive no Brasil e outra em Portugal, donas de personalidades de poucas afinidades. São duas figuras gêmeas contracenadas pelo mesmo ator, que moram à distância (e supostamente não se comunicam tanto além de eventuais cartas), como as de A Dupla Vida de Véronique, mas a lógica de conexão entre elas é cumulativa - uma operação de soma - de uma espécie de narrativa em trompe l’oeil à Escher, onde as aparências de um instante (acompanhamos a história de um jovem no Rio) são rapidamente permutadas em outro (o mesmo ator faz outro jovem em Portugal) sem que o pulo do gato necessariamente seja-nos mostrado; um pouco mais como as falsas gêmeas (duas, três, quatro?) de Hong Sang-Soo em Você e os Seus ou os muitos dias que são um único em O Dia que ele Chegar. Primeiro a história de Romulo, um português vivendo no Brasil, aspirante a músico e escritor, que vive sua rotina um tanto enfadonha entre amigos, roomates, banda, etc., até que sua moto seja destruída e eventualmente uma doença lhe seja revelada. Ele decide então fazer contato com o irmão com quem não fala direito e que costuma lhe ignorar. Eis que nós espectadores passamos a acompanhar um outro filme, que fala do encontro deste irmão com uma brasileira que tenta lhe vender alguns livros. Dois filmes, então? Quase isso - é preciso que um morra para que o outro possa existir -, mas também nem tanto, porque, a partir da terceira parte, o que importa de fato é o que um vai herdar do outro (metaforicamente falando, a herança da obra passada de um irmão a outro), o ritual de transmissão de uma narrativa que se constrói a outra que a extrapola.

 

           Em termos de estilo, o segundo longa-metragem de Leonardo Mouramateus repete um tanto o seu primeiro, Antônio Um Dois Três. O senso de humor à Hong Sang-Soo, feito em cima de certos constrangimentos prosaicos da vida, também está lá, mas ele não é acompanhado da seriedade implícita e trágica por trás das situações habituais do diretor sul-coreano, que giram em torno de masculinidade tóxica ou até mesmo reflexões mais profundas sobre vida e morte. Mouramateus bebe da estrutura, mas aposta num outro tipo de graça, mais à Wes Anderson, das figuras de gosto excêntrico, com postulações e entonações marcadamente robóticas (ou melhor, bonéticas), dramaturgia que reverbera sempre um espírito algo indie, algo lúdico. É indubitável que o mise-en-scéne de A Vida são Dois Dias seja precisa - no sentido de operar dentro de uma lógica construtiva de início ao fim, e que produz um conjunto de efeitos estéticos claros e delimitados -, assim como a dinâmica narrativa que estabelece, pondo, eventualmente a discussão filosófica sobre o tal ‘dois' e ‘um’ mesmo na boca dos personagens; e é esta precisão de alguém que sabe o que faz com o material que tem em mãos para moldá-lo a este resultado o que o filme tem de melhor.

 

           O problema de A Vida são Dois Dias na verdade começa pelo seu verbo. Porque não é apenas o fato da aritmética ser um pouco mentirosa (afinal, quantos dias são o filme?), e sim que a duplicação é acompanhada por uma decisiva eliminação de qualquer ideia de ‘ser’: um músico que não é músico, um gângster de livros que não vemos traficar, uma milionária que se veste como uma imperatriz sem o ser, um célebre livro cuja fama não é mostrada para além do que se fala aqui e acolá sobre ele, uma Portugal que é tão Ceará ou Rio de Janeiro quanto o é lugar nenhum (e vice-versa). Nada é, e é este jogo que possibilita a sua multiplicidade. Mas, ao mesmo tempo, não é como se estivéssemos falando de um filme que leva a premissa do disfarce, do travestimento, da esquizofrenia do ‘ser é parecer’ pós-modernista ou qualquer coisa que o valha até as últimas consequências. Não há nem um fardo no viver papéis destas figuras, e nem nenhum senso de libertação histriônica advinda deles; também nenhuma realidade que lhes dê um chão, que coloque as vias materiais para que façam este traslado das coisas. O jogo de aparências que molda a narrativa e os personagens não passa de um grande ‘wannabe' das coisas (querer ser gângster porque sim, querer ser escritor porque sim, querer ser qualquer coisa de qualquer jeito porque sim, etc.) num mundo lúdico de fantasias e possibilidades infindas onde nada tem necessidade ou consequência, moldado aos fetiches de um demiurgo criador e ensimesmado que põe todos os rumos do jogo à mercê dos seus caprichos, podendo fazê-los e desfazê-los à revelia. A narrativa então pode ir para qualquer lugar mesmo, porque ela não vai a lugar nenhum, e tudo é reversível porque nada realmente o foi. A ressurreição mesma do primeiro personagem é o maior símbolo disto, o atestado manifesto de que A Vida são Dois Dias é marcada por um forte ímpeto por síntese e conciliação, no qual a narrativa transmuta, mas não produz um abismo entre os números que enfileira.

 

           No fim das contas, a exploração formal até bem executada conduz a muito pouco, parecendo não passar tanto de uma afetação pós-modernista (no pior sentido empregado do termo), uma brincadeira sedutora até certo ponto, mas que, uma vez terminada, a gente volta à vida sem grandes abalos; talvez um pouco como o personagem que perdeu a moto, ficou indignado, mas depois tanto faz - simbora porque tem coisas mais sérias por aí. Não digo que o cinema precisa de grandes temas, mas aqui é o caso do que se faz nas telas não ser lá tão importante realmente para nada além dela. Talvez isso tudo faça A Vida são Dois Dias soar como um filme pior do que realmente é, mas vale insistir que não é bem este o caso: o talento de Mouramateus nos segura dentro da proposição, nos conduz com o ritmo exato e sua dramaturgia dá bom tom e sentido às coisas. O problema é que nada ali é sério. Nem a comédia. O jogo fica um pouco insosso, uma brincadeira de um trompe l’oeil. O que é talvez pior do que ruim.

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                                                                                                                                                            Janeiro, 2023

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