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Sagradas superfícies

Xamã Punk (João Maia Peixoto, 2023, Rio de Janeiro)

por Pedro Henrique Ferreira

          Embora um exemplar deveras singular, Xamã Punk parece coadunar com a proposta de curadoria temática mais ampla que vem se revelando, à cada filme, na Mostra Aurora deste ano: o misto entre ficcional e documental com alguma forma de dispositivo performático - a transe como uma espécie de elixir à doença do isolamento (e o retorno à normalidade após o mundo pandêmico parece estar nas entrelinhas) - e filmes feitos por um desejo de (re)encontro com o outro. Enquanto As Linhas da Minha Mão mobilizava uma comunhão entre cineasta e personagem para esta investigação e apostava numa sondagem meticulosa dela, o longa-metragem de estréia de João Maia Peixoto nasce como um projeto coletivo de baixo orçamento e produz um dispositivo cênico bem particular - uma série de blocos/sketches de encontros entre o diretor/personagem e seu operador de câmera com atores produzindo performances em espaços e geografias de ruínas e florestas. Por outro lado, e para justificar o dispositivo, o filme mobiliza uma fabulação ficcional que revela que as pretensões estéticas de Xamã Punk são maiores do que a experimentação coletiva e pobre pode fazer parecer, e que se há uma ligeira atitude libertárias de just do it, ela convive com uma cosmogonia bem particular e ostensivamente pretensiosa.

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          Logo na sequência inicial de Xamã Punk, a voz do narrador/diretor explica o contexto da situação ficcional: uma catástrofe ambiental levou o que restou da humanidade (basicamente a elite) a migrar para os subsolos de uma caverna, construírem um bunker em túneis e, depois disto, por nove gerações a viverem sem ver a luz do sol. Dois jovens resolvem voltar à superfície para, empunhando uma câmera e um gravador de som, deparar-se com os escombros da civilização anterior e à natureza que reocupa o globo terrestre. A narração aponta um reconhecível cenário futurista de sci-fi pós-apocalíptico que está na moda, figurando em uma boa parcela do cinema autoral brasileiro (A Seita, Cantos dos Ossos, Branco Sai, Preto Fica, p.e.) tanto quanto em séries de Netflix ou blockbusters. Mas acompanhando a narração, surgem as filmagens do breu de uma caverna, iluminadas por uma lanterna, em fusão com uma série de imagens de arquivos que mostram uma espécie de arcabouço retroativo da catástrofe - acidentes de trânsito, o mar invadindo as ruas, ventanias, incêndios, etc. A esta dada altura, um pouco en passant, a voz em off as explica: “tudo que eu conheço são túneis, e o resto eu vi em vídeos, games e realidade virtual”. A sequência dá o tom do problema que parece mobilizar o diretor-personagem: um mundo preenchido por um excesso de imagens ‘projetadas’ - a própria situação cinematográfica aqui como uma espécie de mito do mundo -, experienciadas como simulacro, que não dão um conhecimento iluminado do que está fora; o conhecimento a ser almejado. Frente à caverna de Platão, o cineasta/personagem mobiliza-se para sair e encontrar algum tipo de iluminação cosmogônica, simbolizada pelo clarão do lado de fora onde surge escrito o grafismo do título. 

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          Mas, se há uma promessa de elevação espiritual neste gesto, o que vemos o filme perseguir é menos uma iluminação plena que um jogo desconstrutivo (ou um através do outro); abolir os códigos da linguagem e ir atrás de uma concretude gutural do mundo e das coisas - Xamã Punk aposta numa simbiose bastante epidérmica entre uma câmera oscilante e a performance corporal dos atores, nos sons dissonantes e estridentes, uma espécie de primitivismo da forma cinematográfica que coaduna com o esforço de encenar rituais tribais e afins. Aqui, um rapaz catatônico faz gravuras na parede, acolá uma moça olha no espelho e ouve as vozes do universo. Fala-se o tempo todo em uma reconexão com supostos ancestrais que, para serem atingidos, seria necessário recorrer a uma série de procedimentos de libertação. A cena final, apogeu da premissa, mostra um ato místico de castração - o falo (representanado o patriarcado) retirado como uma analogia do despir da linguagem para se atingir realidades mais profundas que são, ao mesmo tempo, as realidades mais epidérmicas possíveis entre corpo e mundo. Se os créditos iniciais mostram o grafismo em gestação, a realidade suprema só é atingida em sua deformação. Neste sentido, Xamã Punk se coloca paradoxalmente como um filme de encontro, mas não de um encontro entre subjetividades, e sim entre corpos físicos, toques, matérias que algum vago conhecimento tribal e milenar a ser descoberto poderia fornecer. 

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          O problema do filme é que esta dimensão verdadeiramente concreta do mundo que ele promete raras vezes é atingida, porque há pouca ou nenhuma vontade de fazer o mise en scéne ou as estratégias dramatúrgicas realmente o produzirem. Não há pensamento de composição de plano (ainda que a estratégia pudesse ser de trabalhar através de uma câmera mais fluída, livre e suja, um found-footage de registro imediato), de articulação sonora (ainda que o dissonante e o gutural pudessem ser seus elementos constitutivos), de tornar seu repertório de corpos (a escolha dos atores, seus gestos e expressões encenadas para a câmera) e objetos congruentes  (os símbolos que escolhe para seu ‘tribalismo') para atingirem efeitos realmente mobilizadores do nosso encontro, como espectadores, com esta camada material que a performance intenciona. O filme se dedica completamente à experimentação no trabalho de atores, a despi-los de suas convicções, e quase nada a como articular o terceiro elemento da equação (o olhar e o som; em suma, nós, espectadores) para acessar a experiência que nos é prometida. As entonações são frágeis e toda a parte de fabulação do mundo pós-apocalíptico e tudo que remete a ele soa introjetado à força no meio da uma experiência lisérgica que poderia ser objeto de mais escrutínio, raras vezes trabalhadas, e ainda mais raras vezes um pouquinho vislumbradas quando as justificativas ficcionais são esquecidas. Não é à toa que, em diversos momentos, o longa-metragem ridiculariza o cinema (a câmera e o registro de som) colocando-o como ‘aqueles da caverna’, aquém da experiência mágica do ‘fora' (os atores, a performance do corpo no espaço) - um certo privilégio da idolatria do primitivo contra a técnica que dá xabu. 

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           A bem verdade, o cinema segue sendo a experiência da caverna, das imagens projetadas, e não do que a transcende - e sua força consiste mesmo em fazer-nos conhecer um pouco do mundo lá fora sem estar presente.  No fim das contas, com todas as suas pretensões de mostrar-nos os seres iluminados do lado de fora, acaba que os poucos bons momentos de Xamã Punk são os menos pretensiosos, pouco auto-indulgentes, que nos fazem lembrar Navarro, Ivan Cardoso e outros que, paradoxalmente, requereram arroubos místicos ao mesmo tempo em que caçoaram de seus exageros. Isto porque não tem muito jeito: o cinema é ainda, como já muito se falou, a arte das aparências. Em relação aos símbolos místicos e hieróglifos, às incorporações ou transes que são experiências internas dos atores por natureza, o cinema é quase sempre uma arte iconoclasta por excelência; e se não houver um verdadeiro trabalho de construção do olhar e da imagem, um estudo minucioso de como produzi-los não apenas no espaço pró-filmico com os atores, mas também e principalmente para nós, que estamos do outro lado das lentes, então, o cinema é um deus impiedoso. 

 

 

Janeiro, 2023

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