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A matéria das caixas

Solange (Nathalia Tereza e Tomás Osten, 2023, PR)

por Pedro Henrique Ferreira

              A premissa da qual parte Solange é bem minimalista: uma mulher (Cássia Damasceno) retorna para sua cidade para buscar um monte de caixas com seus pertences que deixou lá quando foi embora. Este é o gatilho para acompanharmos uma série de deambulações da protagonista encontrando figuras e espaços do seu passado, sempre de forma um tanto célere, sem que a gente conheça muito deles, nem as justificativas dos sentimentos que os reencontros geram, e nem permitindo que os conflitos extrapolem a própria cena. O longa-metragem de Nathalia Tereza e Tomás Osten é uma série de cenas quase que autônomas de contatos entre ela e os coadjuvantes, enfileirados de modo que fique claro que o que importa é como rever cada um deles rebate na personagem principal. É menos um filme de encontros, revelações ou desenvolvimentos que de ecos, reverberações. A estratégia formal de decupagem, montagem etc obedece um tanto a esta opção pelo heliocentrismo de sua protagonista: uma câmera na maior parte das vezes próxima, trêmula, cúmplice dela, um olhar mais visceral e sensível sobre o que ela pode gerar dramaturgicamente, em um ritmo que, se do ponto de vista narrativo é até bem ágil, demora-se sobre o rosto da atriz como uma espécie de sonda afetiva. A câmera funciona um pouco como as dos Dardenne, sem o mesmo rigor formal, mas também sem a mesma necrofilia; pelo contrário, ela se deixa deslumbrar pela mística da atriz, em um certo pacto com ela, para ver o que as oscilações dramáticas podem produzir.

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              É um filme de retorno ao lar, mas nem por isso algo além desse fiapo narrativo nos será dado. No fundo, Solange é um pouco como o papelão das caixas que sua protagonista retornou para Curitiba a fim de resgatar: um filme sobre a sismografia das superfícies que evita se debruçar demais sobre o que pode estar por dentro. Ele nos dá pistas aqui e acolá, mas não sabemos muito mais que vestígios do passado dela, da razão pela qual se foi ou retornou, da natureza das relações com as pessoas que outrora foram parte de sua vida, do que ela foge e o que procura e, principalmente, do que há de tão importante dentro das caixas ou o seu significado para a atriz principal. O longa-metragem de Nathalia Tereza e Tomás Osten carece de desenvolvimento e não nos dá a satisfação de revelar seu conteúdo, porque ele aposta mais num tour de force da dinâmica de variações possíveis na equação básica que repete e na interação entre câmera e personagem que pode advir destes momentos. O olhar engatilhado sobre ela, sondando suas emoções num encontro mais terno com algum coadjuvante, outro mais apático, outro mais bélico; produzindo aqui uma tensão mais velada sobre a entrega ou não dos pertences, ali uma alegria mais catártica num brinde tomando vinho, depois uma carona de motocicleta na qual ela percebe a necessidade de se desapegar um pouco das coisas ou o constrangimento de uma síndica querendo saber demais sobre a visitante. São caixas de vários tamanhos e formatos, mas todas do mesmo material, à procura da mais-valia afetiva que sua atriz pode fornecer.

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              Há um bônus e um ônus nesta escolha. Se, por um lado, o ponto de partida minimalista deixa o campo aberto para que se explore com o máximo de afinco a potência soberba da atriz, por outro estamos encapsulados num lugar de onde não podemos pescar mais que a fricção entre câmera e personagem sobre tudo aquilo a que estamos assistindo. Daí que explicar o que realmente nos foi revelado sobre ela e os outros seja uma tarefa quase impossível. Há alguma premissa metafórica na relação entre uma mulher negra retornando para buscar seus pertences em apartamentos de brancos? Alguma discussão racial ou social na mudança de cenário e profissões? O rito de passagem da personagem é alguma espécie de libertação do passado? Tudo isso fica mais em aberto, mas não no bom sentido - aquele que exige de nós, quase por clamor, a ponderação das opções e possibilidades que a obra em aberto nos dá, que nos mobiliza junto da narrativa e põe em movimento seu assunto a cada novo acontecimento, sofisticando-o, tornando nossa cognição cúmplice das dúvidas e possibilidades que ele supõe - toda hipótese mais elaborada relegada a um tipo de imaginação tão longínqua que toda interpretação nesse sentido parece forçosa e principalmente estática. Solange nos mantêm bem aquém do nosso acesso ao que tudo aquilo pode significar e, de alguma maneira, a pouca pretensão nesse sentido parece ser exatamente a razão pela qual o filme também dá certo dramaturgicamente. Um retrato delicado e simples de alguém que terminamos por ainda não conhecer.

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                                                                                                                                                              Janeiro, 2023

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