Acerca de
Pé na areia, a caipirinha, água de côco, metralhadora...
Paixões Recorrentes (2022)
por Pedro Henrique Ferreira
O início: um português que desce de um barcão para um barquinho, transportado pela vastidão do mar, poderia ser a imagem síntese de Paixões Recorrentes (2022). Poderia ser também a imagem síntese da baldia herança sul-americana, os resquícios de civilização européia-ocidental que, sabe-se lá porque, vieram encalhar aqui. Há na transição dos barcos todo um delírio de grandiloquência transformado em precariedade improvisada no meio de uma bela natureza. Raulino (Pedro Barreiro) cruzou terras e mares atrás de seu amor, e chegou para se deparar com a rejeição. Agora resolveu ficar, cá no paraíso, com outra meia dúzia de gatos pingados que nada tem a prestar, num boteco montado numa bela praia por uns cotocos de madeira. O que fazer neste lugar então?
A obsessão com a figura do estrangeiro que pisa em solo nacional assombrava o cinema de Ana Carolina desde Amélia (2000) e Gregório de Mattos (2002), por exemplo, mas é com sua obra imediatamente anterior que, com efeito, Paixões Recorrentes constitui uma espécie de díptico, moeda ao avesso. Enquanto em Primeira Missa ou Tristes Tropeços, Enganos e Urucum (2014), a premissa cênica era reconstituir o mito fundador em estúdio, numa floresta de matagal artificial, tão dissimulada quanto a pintura de Victor Meirelles - e por isto, optando por um filme metalinguístico sobre os delírios de grandeza de um cineasta a lutar, menos com a paisagem do pais (dado que ele a controla), e mais com o inconsciente e as linhas de força culturais e ideológicas que o atravessam, para impôr sua malograda versão da invenção nacional -, em Paixões Recorrentes, Ana Carolina faz o caminho inverso: salta dos estúdios para uma praia ampla, desértica e fáustica, onde a civilização armada à pau de barraca que aparece, aqui e acolá, não passa muito de uma tendinha improvisada no meio de uma natureza paradisíaca, onde os homens se fecham e jogam conversa fora, bebem e… brigam.
É preciso um adendo para ressaltar algo neste dispositivo. Não é mera questão de décor. Pois se na cultura ibérica, o signo do mar surge como metáfora de sedução para o além-mar, visão saliente de uma atração pelo poder, e ao mesmo tempo, temor, pois é preciso coragem e resiliência para enfrentar os obstáculos das grandes navegações (vide o ‘tudo vale a pena se a alma num é pequena’ de Camões); para nós, brasileiros, a praia é o nosso quintal - lugar onde voltamos quase que diariamente para afundar os pés na areia e nos prostrarmos, sem nenhuma expectativa de sair. 'Preguiça', como disseram os modernistas? Um pouco, talvez, mas não é só isto. Pois a convivência entre aqueles estrangeiros (um português, uma francesa, um argentino, etc.) é tudo menos pacífica e relaxada. Eles passam o dia a digladiar seus valores e crenças, resquícios inconscientes das paixões que motivaram suas migrações; quiçá de lutas que não são nossas, mas que nos atravessam. E que, precisamente, por sua distância e inefetividade com um terreno do real, tornam-se não muito mais que agitada torcida de Vasco-Flamengo (num exímio paralelo com a vida política das últimas décadas).
Paixões Recorrentes parece nos indicar que a inércia dos personagens que aqui estão é também fruto de um sentimento de impotência generalizada e não-participação nas questões mundiais que nos atravessam (daí o retrato de um Brasil na alvorada de uma guerra que também não é coisa nossa), um continente feito de massacres extrativistas, mas também de uma outra premissa completamente absurda - o restolho da Europa atávica e derrotada (e não só dela) largado sem eira, nem beira, num solo paradisíaco. É o que o dispositivo do décor também parece nos dizer: o imaginário das Américas como paraíso tropical, virgem e libidinal se transmuta rapidamente em limbo existencial quando o objetivo inicial não foi atingido. Os conquistadores que, aqui, simplesmente sobraram. Nada aqui se faz, mas não é como se isto fosse um simples elogio da calmaria e de um tempo e ritmo anti-modernos característicos do latino-americano, pois o ímpeto e apelo à ação vertem-se em neuroses. É isto: as paixões de outrora que recorrem nos corpos de hoje são neuroses. Os ‘que-aqui-estão’, se não podem empunhar metralhadores e fazer política, o que fazem? A resposta é simples: falam.
A dramaturgia verborrágica de Paixões Recorrentes decorre um pouco dessa condição existencial, menos uma psicanálise dos seus personagens, e mais uma escrita ventríloqua, o automatismo psíquico puro surrealista. Ou tropicalista, Artaud enfeitado de Glauber Rocha. Só que ninguém, em realidade tem febre, congestão nasal ou nada do tipo. A praia é um palco vazio para a expressão, e a câmera de Ana Carolina registra a movimentação, entonação, e as micro-afetações dos atores, à medida em que declamam sensivelmente suas crenças neste espaço livre para a criação. Mas a brincadeira com os próprios recursos que lança mão é evidentemente uma maneira de pervertê-los: ninguém fala com ninguém, tudo que é dito soa fora-de-lugar, distante do centro de onde advêm, naquela praia que está ali, alheia a toda a declamação. Do mesmo modo, entre si, nenhum deles se ouve. Urrem sozinhos, ao léu, sobre virtudes e valores. E se, inicialmente, o olhar de Ana Carolina nutre alguma veneração por esta forma dramatúrgica, rapidamente todos os personagens e suas supostas éticas e valores se revelam coisas espalhafatosas.
Um adendo bem importante: na trilogia composta por Mar de Rosas (1977), Das Tripas Corações (1982) e Sonho de Valsa (1987), a verborragia e os jogos lúdicos de palavras (que compunham também os títulos dos filmes) eram defrontados com imagens expiatórias, de confronto ao status quo mais pudico através de uma completa libertação da libido e do desejo ao ponto do vil; depois deles, nos longas-metragens que realizou no início dos anos 2000, o excesso da palavra tornava-se vazão poética, igualmente libertadora, em um mundo demasiadamente cinzento e hirto do Brasil da Retomada. Agora, primeiro em Primeira Missa..., e depois em Paixões Recorrentes, as palavras giram em falso, não podem ser levadas nem a sério, nem ao pé da letra. Elas pouco revelam ou confrontam. A mesma chave dramatúrgica de antes parece esvaziada perante a distância entre palavra/sentimento e condição real/material de onde ela advêm - não há trotskianismo ou salazarismo na praia que justifique levar a sério o que é dito e o porque se briga - e por isto, a parlapatonice ganha ares de farsa. O descolamento entre o que é proferido e o local onde a coisa é aludida geram um curto-circuito cômico em Paixões Recorrentes, que faz a dramaturgia se tornar, repletas de cacoetes, praticamente uma chanchada. Até as coisas supostamente sérias - à titulo de ilustração, a cena em que Thérèse Cremiaux larga uma pedra sobre a cabeça de Danilo Grangheia - viram como que satíricos esquetes novelesco de Uga Uga. Ana Carolina partiu, eventualmente, de Brecht ou Artaud, para chegar à conclusão que o Brasil é mais a cara de José do Patrocínio Filho ou Aluísio Azevedo.
A chanchada era, porém, um gênero da conciliação social. Paixões Recorrentes é mais sobre a impossibilidade de mundo comum. A alusão à atualidade que faz aquela ilha em 1939 é menos um espelho direto quanto uma espécie de genealogia do Brasil que nos pôs aqui, eterno estivador de ideologias estrangeiras, vivendo a farsa de uma guerra que não é nossa (e que no entanto, como sabemos, mata), brigando entre si numa praia tranquila logo antes dos tempos de horror. Um pouco como os burgueses de A Regra do Jogo (1939), brincando de caçar em uma mansão isolada de férias, logo antes do cataclisma que, sem saber, foi esta classe mesma que produziu; o resultado da ‘crise histórica da mentira’ que Paulo Arantes percebeu no filme de Renoir. A praia urge por ser um espaço de possibilidades abertas para a produção de novos sentidos sociais [como, p.e, as Pusztas de Jancso em Salmo Vermelho (1972)], mas os agentes ficam a reciclar os problemas do velho mundo. Ao ponto que é um pouco difícil não torcer para que todos que estão ali simplesmente se matem.
O problema de Paixões Recorrentes é muito menos o dispositivo cênico ou o jogo dramatúrgico em algo anacrônico do qual o longa-metragem se utiliza; e sim, o fato de que estes recursos que constroem um filme tão singular (e por isto grato) para o padrão da produção nacional atual soem - como as teses ideológicas de seus personagens - 'melhor no papel que na praia’. Os recursos contribuem enormemente para uma tão singular leitura do momento político do Brasil, mas aquilo que conta muito no cinema, a experiência de fruição do resultado destas estratégias, deixa Paixões Recorrentes bem aquém dos impressionantes trabalhos anteriores de Ana Carolina. Longe do tédio absoluto, porém nem perto dos momentos de arrebatamento que uma das nossas grandes diretoras já produziu.
Outubro, 2022