Acerca de
Olho pro céu e vejo como é bom...
Marte Um (Gabriel Martins, 2022, Brasil)
por Juliana Costa
“Anoiteceu / olho pro céu e vejo como é bom /
ver as estrelas na escuridão / espero você voltar / pra Saigon”
Saigon, Emílio Santiago
Não é pouco Marte Um (2022) começar com sons de explosão e aos gritos da vitória do governo Bolsonaro - e confesso que reluto em escrever este nome em um texto sobre filme tão delicado. Mas é fato que o nome é a segunda palavra (depois de “mito”) que ouvimos, ainda com a imagem do céu estrelado ocupando a tela. No entanto, se o céu como um espaço de poder está ocupado por estas palavras de agonia, os personagens de Marte Um ocupam espaços mais expressivos: os espaços de prazer. Não por acaso, o tom fabular da narrativa e das imagens, como o rosto de Deivinho olhando o infinito, reforçado por uma trilha sonora inequívoca, evoca os filmes de aventura juvenil norte-americanos do início dos anos 1980, período do conservadorismo da era Reagan. Em momentos de ataque explícito, nos refugiamos nos sonhos, na possibilidade de voltar para Saigon.
Enquanto a vitória mais sofrida da república brasileira acontece, a casa de Tércia (Rejane Faria) e Welligton (Carlos Francisco), pais de Deivinho (Cícero Lucas) e Euníce (Camilla Damião), dorme. Ainda assim, a explosão vai acontecer novamente em momento inespesperado e se repete cena após cena nos ouvidos de Tércia e nos nossos. Um estrondo que anuncia o tempo todo: alguma coisa ruim vai acontecer. De fato acontece. Entre situações prosaicas e quiméricas, como o telescópio construído por Deivinho, a estrutura da família vai sendo remexida pelos sonhos e desejos dos filhos do casal, crises de ansiedade da mãe e a demissão do pai.
E se os personagens ocupam este espaço de prazer, o espaço da possibilidade e do sonhar, o diretor Martins também ocupa o seu: antropofagisa o melhor do cinema norte-americano dos anos 1980, como já havia feito em No Coração do Mundo (2019), que co-dirige com Maurílio Martins, e filma a família com a inocência afetuosa de um Steven Spielberg e a dignidade heróica de um Clint Eastwood. É nos closes do rosto curioso de Deivinho, ou na expressão do pai aflito com a demissão, ou ainda na construção da cena em que Euníce apresenta a namorada à família durante um jogo de Atlético e Cruzeiro, ou na tensão da sequência do acidente de bicicleta de Deivinho, que Marte Um alça vôo e nos leva para o céu da nossa infância cinematográfica - quando ainda éramos inocentes - e pra onde sempre queremos voltar.
Mas Marte Um é coisa nossa, e arrasta a nossa fantasia também para os programas de auditório (patrimônio nacional), que tiveram seu auge na televisão brasileira nos anos 1990, com a dupla de namorados da casa onde Tércia trabalha. Martins ainda nos presenteia com uma cena de sexo quente em local proibido, embalada por Emílio Santiago, no maior estilo mini-série televisiva da meia noite. É esta colagem de cinema com televisão, espetáculo com cotidiano, chiclete com banana, que imprime no filme uma nostalgia absolutamente atual.
Marte Um chega aos cinemas no mesmo ano de Nope (2022), Jordan Peele, com quem compartilha, por vias opostas, o olhar para o espetáculo. Se Peele penetra o maneirismo visual para pensar o cinema depois do fim, Martins dá um passo atrás e busca o cinema nas imagens cotidianas de uma família de classe média brasileira. E os dois se tocam no céu. Permanecendo em solo nacional (ou nas profundezas do solo nacional), Marte Um vai às telas no mesmo ano da estreia em festivais de Mato Seco em Chamas (2022), Adirley Queirós e Joana Pimenta. E não poderia haver dois filmes tão diferentes sobre o Brasil da era Bolsonaro. Enquanto Adirley Queirós fabula uma distopia comunitária como resistência política, Gabriel Martins olha com afeto para uma familia que se mantém unida apesar das explosões: “A gente dá um jeito, nega”, diz Welligton com uma confiança tímida após a demissão.
Vislumbrando brevemente este cenário, Marte Um é um abraço. Existe a possibilidade do sonho. Deivinho pode sonhar com a sua missão Marte Um, Eunice pode imaginar um futuro tranquilo com sua namorada, Gabriel Martins pode viajar para Los Angeles e voltar com uma estatueta dourada. Nem nós sabíamos que precisávamos tanto deste filme em 2022.
Outubro, 2022