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A marca da liberdade

Mar de Rosas (1978)

por Juliana Costa

          O cinema de Ana Carolina tem a marca da liberdade. Considerando uma linha cronológica, seus longa-metragens vão da biografia documental de Getúlio Vargas, epítome de um autoritarismo paternal, ao caos selvagem e insular das Paixões Recorrentes (2022). Os três filmes que dão sequência à morte do pai, expressão com a qual a própria cineasta se refere a Getulio Vargas (1974), foram chamados de a “trilogia da condição feminina” porque tratariam de questões concernentes às mulheres. Isto é uma verdade se considerarmos o investimento contra todo tipo de autoritarismo como um tema feminino, a começar pelo autoritarismo das formas narrativas cinematográficas. Oxalá fosse. 

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          Esta sequência anárquica inicia com Mar de Rosas (1978), que implode a célula familiar, segue com Das Tripas Coração (1982), que incendeia a escola e termina com Sonho de Valsa (1987), que desmancha a ideia moderna do amor romântico. Ou em uma leitura mais psicanalítica - e não precisamos ter medo de ver através desta chave a sua obra, já que a própria Ana Carolina reivindica a importância da psicanálise para a sua vida e o seu cinema -, a infância, a adolescência e a vida adulta. 

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           A saga fragmentada de Mar de Rosas já começa bem: Felicidade (Norma Bengell) mata seu marido (Hugo Carvana) a navalhada no banheiro, e foge de carro com a filha Betinha (Cristina Pereira). E é sob o comando esculhambado de a menina que Mar de Rosas se despedaça e se recompõe até o último minuto. Sempre à espreita e, concomitantemente, em primeiro plano, Betinha tenta o tempo todo matar a mãe, a família e o filme. Ao longo da história do cinema, mas sobretudo na contracultura dos anos 1960 e 1970, em países de regimes autoritários, como o Brasil, a figura da criança, da mulher e do louco sempre foram forças transgressoras nas narrativas contra a ordem. Aqui, a criança, desconcertantemente interpretada por Cristina Pereira, - quem àquela altura estava na faixa  dos 30 anos, incorpora essas três figuras insurgentes ao mesmo tempo. É dela o primeiro plano, mijando na estrada, antes do filme se tornar um road movie de perseguição policial. Betinha ainda tenta botar fogo em Felicidade, enterrar o casal interpretado por Ari Fontoura e Miriam Muniz, tão modorrento quanto sanguinário, e dá uma banana para o espectador na última cena. 

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         É de dentro da neurose familiar que a personagem tenta destruir a narrativa. Ela quer implodir a célula nefasta à partir de seu interior, por meio de suas engrenagens. É também pela linguagem que Betinha, que já foi considerada como um alter ego de Ana Carolina, avacalha tudo. Como um grilo falante, repete frases sem sentido, às vezes fora do quadro, como uma voz do inconsciente. Para além das metáforas recorrentes, é na fala que Mar de Rosas explicita a sua linhagem psicanalítica. Os personagens falam, falam, falam e não dizem nada. Falam até esgotar o signo da expressão oral como instrumento de comunicação. Falam frases sem sentido, falam frases prosaicas, falam entre si e para ninguém. “Me deixa falar só um pouquinho” é a primeira fala da personagem de Norma Bengell, seguida pelas variações: “Eu quero falar”, "Você não me deixa falar”, entre outras. Como em uma peça de Beckett, os personagens esperam o fim do mundo falando, ou ao menos tentando.

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          Mar de Rosas é um filme que se lança contra o poder e a ordem. Contra o poder que usa bigode e óculos Ray Ban, personificado por Orlando (Otávio Augusto) - que já na sua primeira sequência, protagoniza uma perseguição digna de cinema policial norte americano, daqueles filmes que dizem ser feito para garotos, com direito a um “Yes, mammy” de Betinha e tudo. Mar de Rosas lança seus fragmentos também contra a ordem cinematográfica de coerência linear. Filme quase episódico, trata das micro relações com uma alternância de poder desconcertante. Dificilmente sabemos quem, afinal, manda aqui. Quando alguma linha narrativa quer se instaurar, o filme se estilhaça violentamente. Um atropelamento, uma navalha, uma gilete, um caminhão de areia, algum fragmento sonoro, um ditado popular: tudo vem para tirar Mar de Rosas dos trilhos (ou atirá-lo aos trilhos).

 

      Mas se engana quem imagina que este caos libertário e psicanalítico é fruto de alguma inspiração improvisada ou inconsciente. Mar de Rosas explicita o rigor da direção de Ana Carolina, que passa de um plano-sequência de câmera-na-mão no meio da rua, interagindo com transeuntes à la cinema marginal, para uma sequência minuciosamente decupada, digna de um teatro de câmara. São dessa sequência final as imagens que ficam. Dentro de uma pequena casa, cinco personagens tentam contracenar, em meio a móveis baratos e bibelôs soterrados. Ana Carolina joga com os limites do quadro e a profundidade de campo para sufocar a todos naquela atmosfera pequeno burguesa, inclusive a gente. Seus movimentos de câmera precisos estão mais próximos da objetividade clássica do que da hesitação moderna. Se Mar de Rosas se estraçalha e se reconfigura o tempo todo, é pelas mãos da cineasta, que mantém as rédeas curtas dos personagens, da trama e da fotografia. 

 

         Ainda, a fragmentação que Ana Carolina atira contra a ordem, não é do acaso, tem estratégia e endereço: violenta o filme e também atinge em cheio a protagonista Felicidade. No seu corpo, as marcas da narrativa se manifestam e ficam. A tentativa de estrangulamento que permanece como um lenço no pescoço, o vestido queimado pelo incêndio no posto de gasolina, e as escoriações de um atropelamento se acumulam na fisionomia da personagem, que ainda carrega o característico olhar melancólico de Norma Bengell. Mas, de forma alguma, Felicidade é uma vítima das circunstâncias. Ela e seus algozes, Betinha e Orlando, juntamente com o casal Niobi (Mirim Muniz) e Dirceu (Ary Fontoura), são aranhas e moscas nesta teia neurótica que convencionamos chamar de família. E é por isso que Betinha arremessa todos nos trilhos do trem antes de dar uma banana para todos nós.

 

 

Outubro, 2022

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