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Decomposição em imagem aberta

Das Tripas Coração (1982)

por Marcelo Miranda

          Era 1982 quando Das Tripas Coração chegou aos cinemas, mesmo ano da estreia de Pra Frente Brasil, o filme de Roberto Farias que primeiro falou abertamente dos horrores da ditadura militar, dois anos antes do fim do regime. Me parece sintomático que o segundo longa-metragem de ficção de Ana Carolina tenha aparecido junto ao de Farias: um é contraponto do outro para, em certa medida, lidarem com inquietações muito similares. No que Pra Frente Brasil busca diálogo estritamente objetivo com o público ao narrar, em formato thriller, o mecanismo de repressão do poder institucionalizado a opositores do regime autoritário, Das Tripas Coração alegoriza um estado de coisas de forma que o sentido maior é questionar o uso do poder como moeda de troca a um suposto bem-estar social. O filme de Ana Carolina naturalmente é vinculado à sua época, mas, trazido à tona em qualquer outro período, mantém suas provocações e contradições. É, assim, um objeto artístico completo e atemporal, enquanto o de Farias é um objeto histórico de seu tempo.

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        O comparativo me parece válido porque Das Tripas Coração, revisto em 2022, não fala “apenas” de um momento do audiovisual brasileiro, não é um filme que se vê ou revê por completismo, autorismo ou pesquisa histórica (ao menos não só por isso.). Ele fala de Brasil, de rompantes autoritários, de maquinações dos ricos para pisotearem pobres, das instâncias de poder usadas num jogo de forças, de fetiches e recalques trazidos à tona como doença. É um filme delirante cuja estrutura se faz ver a partir da incompreensão e do excesso, do gozo e da libertinagem, do mau gosto e da sofisticação retórica. Se no filme anterior, Mar de Rosas (1977), Ana Carolina trata da falência da intimidade como recurso afetivo de salvação, em Das Tripas Coração o que nos surge é um retrato mais amplo, dispersivo e determinante do tipo de relações que interessa ao cinema da diretora e que ela identifica como gênese da sociedade na qual se move como criadora. 

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          Por mais que seja uma obra que, de sua estreia adiante, fixa-se no imaginário cultural e dele passa a fazer parte, Das Tripas Coração só podia surgir da forma como surgiu justamente pelo ocaso da ditadura, quando as reflexões sobre o autoritarismo vêm com mais força, como um expurgo do silenciamento de décadas. Não é por menos que o filme tenha ficado meses retido na censura e somente liberado após inserção de um letreiro informativo no qual se lia que tudo em cena era “uma interpretação delirante que não corresponde à realidade” – tendo por base o suposto sonho que o personagem de Antônio Fagundes tem logo no começo.

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        Das Tripas Coração se inicia na chegada de um um interventor (Fagundes) para fechar um colégio de moças sob a justificativa de prejuízo e improdutividade. No aguardo das diretoras (sobre quem ele especula se são “bonitas”), o homem repousa a cabeça na mesa e cochila. O filme, então, aparentemente adota o sonho do interventor como propulsão narrativa, ainda que nada além do corte na montagem indique exatamente isso. O emolduramento serve muito mais para que Ana Carolina se liberte de quaisquer amarras de enredo ou narração pura e simples e possa, com a liberdade do bom criador, transitar pelo mais completo absurdo do deboche e da provocação. O simples procedimento da indicação de um sonho retira o filme do compromisso realista que tanto se cobra especialmente no cinema brasileiro e permite-lhe expor e falar e mostrar o que convém sem precisar prestar contas a alguma lógica argumentativa. Só assim para que se possa relacionar Luis Buñuel [O Anjo Exterminador (1962), ou Viridiana (1961)] com VÄ›ra Chytilová [As Margaridas (1966)] e fazer uma espécie de releitura ainda mais libertária de Zero em Comportamento (1933). 

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    As referências estão lá, mas são secundárias ao que faz Ana Carolina em Das Tripas Coração e servem mais para localizar a diretora num tipo de cinema anárquico que preza pelo descumprimento de regras convencionalmente estabelecidas. Como dito, a cineasta não se preocupa em prestar contas nem dar piscadelas. O que vem do filme é a irreverência do choque, a surpresa constante de seus próprios rumos, o absurdismo crescente que escapole da metáfora simplista. Há que veja psicanálise, há quem veja chanchada em Das Tripas Coração. A deliciosa salada de Ana Carolina tem um tanto de tudo, e o que mais se apreende é o bem-vindo (e às vezes constrangedor, no sentido da nossa percepção e identificação) descontrole que só surge justamente de quem sabe muito bem por onda transitar. Na radiografia das hierarquias de poder, Das Tripas Coração deixa ver o mais profundo de seus órgãos em movimento – e em decomposição.

 

 

Outubro, 2022

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