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Cor-de-rosa Barbie

Barbie (Greta Gerwig, 2023, EUA)

por Tainah Negreiros

        Uma boneca adulta, alternativa às bonecas bebês que implicavam crianças mães. Uma boneca que cristalizou o padrão de beleza nos moldes americanos  e, ao mesmo tempo, foi possibilidade para crianças de diferentes origens criarem histórias e mundos. A Barbie foi principalmente loira, entre outras pelo caminho. A Barbie padrão e protagonista é interpretada pela radiante Margot Robbie. No filme de Greta Gerwig, ela nos é apresentada a partir de uma série de reconhecimentos de brinquedos daquele universo e de algumas repetições da rotina da boneca humana remetendo às brincadeiras. Ela toma banho sem água, bebe do copo sem leite ou caminha pela água sólida da piscina cênica. Ela também flutua no ar até o carro cor-de-rosa, que anuncia a falta de peso dela no filme. A rotina é pouco repetida, uma vez só, algo que talvez desestabilizasse um pouco aquele colorido, mas não. 

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        As demais Barbies entram e saem de cena em uma diversidade programada, sempre associada aos ofícios e profissões, assim como é no comércio da boneca. O filme de Greta Gerwig assume um tom de leveza generalizada. O plástico cor-de-rosa não é só o cenário mas também a entonação. Em Barbieland, a comédia está presente principalmente nos rápidos contatos entre barbies e kens e em uma estabilidade consolidada pela repetição, não suficientemente mostrada a nós. Algo que faz evocar, por exemplo, o mundo criado por Peter Weir em um O Show de Truman (1998), só que ali, visto com estranheza, como uma ameaça, ou algo a se escapar. Em Barbie, o mundo de Barbieland é algo que veremos logo mais no filme ser algo a ser recuperado.

 

                Além do Show de Truman, gostaria de citar dois outros filmes, não por se parecerem com o de Greta Gerwig, mas por uma distância crucial estabelecida. O primeiro é Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman, e o segundo é As Duas Faces da Felicidade (1965)de Agnès Varda. Dois filmes dirigidos por mulheres brancas europeias. O primeiro construído através da repetição e supressão das elipses como matriz para falar de um mulher e falar de gênero, o segundo usando o colorido para perturbar a alegria e os padrões nas relações heterossexuais românticas. Greta Gerwig não precisava, nem deveria, repetir nenhum desses filmes, mas há algo na história da representação de padrões por mulheres que acompanha e informa o que foi e não foi feito em Barbie - informam o estado da arte, da cultura, da cultura de massa e das táticas e práticas das representações no debate feminista e que encontram o mundo. Antes o cinema moderno europeu, aqui o cinema contemporâneo na era do streaming no borramento com a propaganda. Antes a margem, agora a apropriação ou a inserção no mundo mais comercial promovendo um determinado alcance. Assistir Barbie é lidar inevitavelmente com a representação das mulheres na história das imagens, sobre essa e outras Barbies e não-Barbies que o cinema e a televisão, por exemplo, mostraram.

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              O conflito que conduz a narrativa de Barbie vem de um questionamento feito anos antes por Nicole Kidman para Reese Whiterspoon, enquanto filmavam a série Big Little Lies (2017), criada por David. E. Kelley e dirigida por Andrea Arnold e Jean-Marc Vallée: “Vocês por acaso pensam sobre a morte?”, pergunta Kidman no camarim à colega atriz. Sim, pensamos. A Barbie também pensa. Barbie fura o buraco da Barbieland, mas o questionamento vai se encerrar ali como texto, sem impregnar as imagens de nada. Não há perturbação. A inquietação matriz da pergunta, feita por Kidman durante as gravações de um seriado que é um belo exemplar sobre “barbies” de grande complexidade, fica só como uma referência rápida ou como um motivo perdido entre as diluições do filme. A escolha é pelo humor ou a escolha é pela dissolução? O que há por trás do questionamento da mulher estrela de Hollywood, bela, alta e  padrão que é Nicole Kidman e que tocou Greta Gerwig e norteou o filme? Podemos nos perguntar e seguir.

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          O questionamento em Barbie leva a uma transformação física da boneca humana. Ela, antes dotada do seus paradigmático pé sempre pronto para colocar um salto, passa a ter os pés planos. Uma crise. Com isso, Barbie se lança no mundo real. Como em Barbieland, as coisas são descomplexificadas e sem peso. Pouco nos é oferecido para sabermos mais da mãe, Gloria, interpretada por America Ferreira, e da filha Sasha. Uma pena, pois, de imediato, tanto America quanto a filha oferecem duas visualidades interessantes, terrenas, cheias de possibilidades dramáticas para uma Barbie tensionar, mas tudo segue muito apressado, textual e distante do que Greta já foi capaz de fazer, por exemplo, com o belo e complexo Lady Bird (2017). Ali, mãe e filha cheias de faíscas e desdobramentos. Agora, entre a mãe que brincava de Barbie e a filha que reconhece na Barbie uma inimiga, há muitas possibilidades que ficam pelo caminho. A minha sensação é de que há um filme de terror que Greta Gerwig deliberadamente oculta.

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             Diante do seu universo tomado por Kens, a Barbie enfurecida e triste por querer recuperar a Barbieland que vimos no começo do filme sucumbe ao chão, revoltada, indignada. Em uma cena plasticamente interessante, vemos a Barbie de Margot Robbie rolar pelo cenário colorido incapaz de levantar-se. Dado o pouco efeito diante da falta de peso atribuída a ela anteriormente, aquilo se perde no que poderia ser uma potência dramática no mundo cor-de-rosa. Me lembro de no cinema olhar pra ela e me perguntar o que a Barbie quer. Ela quer Barbieland e seus pés prontos para os saltos de volta. O mundo dos Kens é inegavelmente terrível e bélico, mas o mundo das Barbies, não das mulheres, também era bom pra ela? O que a Barbie pode? Onde ela vai conseguir ir? Que tipo de emancipação o filme pode construir no interior da proposta mercadológica?

 

             E assim o filme se perde ao tentar nos convencer de que é possível a subversão no interior da publicidade enquanto se parece muito com uma série asséptica da Netflix. As barbies, os kens, o Allan, os empresários, todo mundo é sem peso. Caminham e flutuam pelos cenários como se a vida fosse simples. O filme é construído em torno de um deslumbre visual reconhecível, mas não valoriza a superfície e suas possibilidades. Apesar de que a proposta é um enfoque na plasticidade e em aspectos cômicos dos temas abordados, a impressão é de que o filme desperdiça superfícies e aparências nesse movimento de dissolver tudo que toca. A superfície e o universo plástico não levam a outros lugares, não têm nenhuma camada, exceto a visualidade criada para fazer pequenos agrados, ou para informar um feminismo liberal ou não em formação. Dizer o que digo não quer dizer que se trate de um filme superficial, mas de um filme que despreza o potencial das superfícies e da plasticidade com que se relaciona.  

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               Me pergunto se não estaria sendo sisuda com um filme de apelo e de gigantesco alcance sobre o debate feminista e sobre a sociedade patriarcal. Algumas simplificações e mensagens mais diretas de fato ecoam ou se relacionam bem com as discussões e experiências contemporâneas. Mas me pergunto também, muito honestamente, se alguma coisa ali vai ficar de verdade diante do didatismo não consistente dramaticamente. Às vezes, com algum otimismo, penso em Barbie como um objeto apressado mas que, inserido em um contexto de debate, relaciona-se a uma série de sementes já presentes do imaginário de mulheres de várias idades. Ao mesmo tempo, gostaria de reiterar o questionamento: é possível MOSTRAR em meio à dissolução generalizada de drama?

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Agosto/2023

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