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Acerca de

O avesso da Retomada

Amélia (2000)

por Filipe Furtado

          Amelia foi lançado no calor da retomada. Uma produção de época, grandiosa, parcialmente falada em francês, com um mote histórico, participação de Marília Pêra e grande elenco. Em suma, é um longa-metragem desse momento que, em tudo, sugere algo muito distante da imagem dos filmes anárquicos que Ana Carolina realizou no começo da carreira. Parte da graça do filme surge daí: a sua superfície é do cinema oficial brasileiro no auge do governo Fernando Henrique Cardoso, mas Carolina, sempre uma realizadora sagaz, faz o avesso da retomada. Os elementos de cena suntuosos são corrompidos por uma atitude violenta diante de cada uma das relações que estabelecem.

   

         Trata-se de uma comédia amarga sobre a impossibilidade de comunicação entre Sarah Bernhardt, a grande atriz, diva do teatro europeu da virada do século XX, e as irmãs da sua camareira brasileira, com quem ela precisa acertar algumas contas. Uma incomunicabilidade que tem pouca relação com a língua, porque essas diferenças elas até tiram de letra, mas entre colonizador e colonizado, nas diferentes formas com que as vivências dessas mulheres negociaram suas relações de exploração e poder. O mote do filme é a terceira passagem de Bernhard pelo Brasil, quando teve um acidente que resultou numa perna quebrada, e que ela eventualmente teria que amputar. O filme é marcado por esta ferida, e sabemos que a ação vai terminar com as irmãs tendo papel no acidente, pois tudo nele é carregado de promessa de violência.


          Amélia, a camareira que convenientemente morreu fora de cena – e interpretada numa escolha bastante simbólica por Marília Pêra -, é uma presença constante na sua ausência, a possível ponte entre aquelas experiências que não estão mais lá. Ela descreve as irmãs da atriz francesa como as “belas selvagens”, e o filme como um todo funciona como uma resposta a tal tentativa de apaziguamento. Há aí o uso subversivo das formas da retomada: do momento mais oficialesco do cinema brasileiro - do desejo de uma imagem pacificada -, Ana Carolina extrai o seu oposto. Nada de dourar a pílula em Amélia, nada de baixar o tom. O seu filme não tem nada de belo, e sim faz o elogio necessário do selvagem. Qual exemplificado em magnífica atuação de Myrian Muniz, um primor de tom de voz e linguagem corporal, sempre pronta à posição de ataque (Camila Amado não lhe fica muito atrás), sempre pronta para dar o bote, Amélia é um filme que entende a necessidade de dar uma mordida. Diante dessas relações violentas de poder, é necessário impor uma reação a altura. É um filme que fala grosso, alto e num mau tom. Uma superprodução que pede a todos que se adaptem ao que coloca na mesa.

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          No cinema de Ana Carolina, sempre existiu uma tendência a tomar as partes pelo todo. Ela vem de uma geração na qual esta ambição totalizante é um motor vital, vide sua estréia no longa metragem com um filme sobre Getúlio Vargas. Na trilogia que fez sua reputação, este olhar expansivo manteve-se filtrado pelas experiências individuais das suas personagens. Amélia inverte um pouco a situação: é inegável que se trata de um painel nacional. O diálogo, por exemplo, é bastante direto com Mário e Oswald de Andrade, e também há o uso expressivo de Gonçalves Dias, cujo I-Juca-Pirama é uma recorrência que expressa, na narrativa, o choque civilizacional. Ao mesmo tempo, cada uma das suas quatro personagens principais traz consigo uma série de vivências que movem a ação do campo do simbólico para uma dramaturgia mais direta. Pensemos numa causa célebre da época - o Cronicamente Inviável (2000) e seu retrato grotesco do país - e notamos a diferença: num filme como o de Sergio Bianchi, caberia a Sarah o papel de dondoca e Francisco o de chucra, com tudo de diminuidor que ambas as descrições permitem. Mas o filme oferece às quatro personagens algo muito mais complicado e impossível de descrever, o que torna o retrato amplo do fracasso da sua comunicação algo muito mais rico. 

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          O filme pertence a uma tradição da ficção latino-americana, a do gringo de passagem que tem que lidar com o delírio dos trópicos, uma ideia bem cara à retomada [desde o proto-Retomada A Grande Arte (1991), de Walter Salles], mas com frequência numa chave bem mais conservadora do que aqui. A Sarah Bernhardt de Beatrice Agenin e Ana Carolina é uma imagem perfeita deste gênero, e o filme estabelece uma narrativa de abismo e perdição. Amélia é sobre como as noções de civilização europeia perdem o tom por aqui, mas ele não se contenta com um retrato negativo do país, e sim abre espaço para a potência do comportamento das irmãs, que vira as relações ao avesso. No que cabe a itinerários do estrangeiro por estas bandas, Amélia está muito mais próximo de Tudo é Brasil (1997), de Rogério Sganzerla, do que Carlota Joaquina, Princesa do Brasil (1995), de Carla Camurati. O filme de Sganzerla é sobre a sedução das imagens do Brasil diante do olhar de outro estrangeiro famoso, Orson Welles; e Ana Carolina faz movimento semelhante, de forma mais violenta, empurrando Sarah Bernhardt para o nosso país, não para rebaixá-la, mas para melhor devorá-la. A própria diretora já descreveu sua relação de amor e ódio com o país, e Amélia é um filme onde o olhar mordaz e o abraço parecem especialmente unidos. Tudo se degluti e termina com Gonçalves Dias reembalado para gringo ver. Mas suas marcas são inegáveis: muito longe da negativa ou do apaziguamento, Amélia deságua numa tragédia satírica da violência destas relações, uma farsa afirmativa e selvagem.

 

 

Revista Abismu - Outubro, 2022

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