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Em busca de uma indústria de cinema perdida

AIR: A História por trás do Logo (Ben Affleck, 2023, EUA)

por Filipe Furtado

        Nos últimos anos, um subgênero que se tornou recorrente no cinema americano é o do filme dos bastidores de capital lidando com produtos famosos, grandes empresas, vitórias específicas de marcas conhecidas, a antiga cinebiografia migrando para o que podemos chamar de cinema de empreendedor. É um modelo de filme que combina o autoelogio dos financiadores (o aumento de ficções do tipo foi exponencial após a entrada em peso do Vale do Silício na área) com a crença muito recorrente na força da dramatização de casos reais. AIR: A História por , dirigido, produzido e estrelado por Ben Affleck, é um bom exemplo destes filmes, inclusive por ser mais bem posto de pé do que outros e por ter uma fundação um pouco mais ambiciosa - talento e tentativa de justificar por vezes só reforça a falência do mesmo.

        AIR retrata as negociações que levaram a Nike a contratar Michael Jordan antes deste entrar em quadra profissionalmente pela primeira vez como seu principal garoto-propaganda, o que levaria a empresa a se tornar a líder no mercado de tênis. É a história de um executivo (Matt Damon) com visão para fazer algo fora dos padrões e o suporte institucional que ele recebeu. Jordan é a figura central para esta mitologia e é cuidadosamente mantido fora de quadro. Mesmo quando a família vai ter a reunião com a empresa, apenas vemos planos ocasionais incompletos de um jovem negro presente na sala que o filme prefere evitar dar forma completa (a maioia das negociações é filtrada pela mãe vivida por Viola Davis, cujo casting por si só reforça como o filme é uma mercadoria cuidadosamente pensada).  O atleta é a figura mais importante do negócio e por isso mesmo grande demais para o filme sobre ele. Para AIR fazer o elogio disruptivo do sistema, ele precisa ser mantido neste lugar de símbolo irrepresentável.

        Quando Affleck divulgava o filme, ele incluiu constantemente na conversa sua nova produtora, Artists Equity, e a promessa de promover uma divisão mais ampla de lucros com os nomes principais da equipe criativa, assim como os esforços dele de garantir que a Amazon desse ao seu filme “para adultos” um lançamento comercial amplo para além do streaming. Não é muito difícil notar o esforço de equiparar filme e produtora, o empreendedorismo dos personagens com o de Affleck e Damon. Logo, trata-se de uma carta de intenções, menos sobre tênis do que sobre repensar como Hollywood opera hoje. O clímax de AIR gira em torno dos esforços da família Jordan de garantir a Michael uma participação nos lucros do tênis que leva o seu nome, e o filme faz bastante barulho sobre como os termos do contrato tornaram Jordan o primeiro atleta bilionário do mundo. O paralelo é bastante óbvio, assim como a maneira como AIR permanece casado com uma visão extremamente elitista sobre relações trabalhistas.

        O elogio que AIR busca é aos próprios esforços de suas estrelas para buscar um espaço criativo privilegiado e mais artesanal dentro da estrutura ampla do cinema americano. Para isso precisa constantemente imaginar a Nike não como uma grande empresa de sucesso, mas quase como um pequeno escritório lidando com gigantes como a Adidas (há múltiplas referências a relações nos anos 1940 da empresa alemã com o governo nazista). Affleck e seus colaboradores filmam a sede da empresa para reforçar este aspecto intimistas, e as cenas em que Damon encomenda um novo tênis aumentam o lado artesanal da criação, com destaque para a presença do ótimo Matthew Maher como o designer. O filme se esforça muito para vender este aspecto conspiratório entre amigos da ação. 

        AIR lembra muito sobre certos aspectos Ford vs. Ferrari, também estrelado por Damon, sobre os esforços da construtora de vencer as 24 horas de Le Mans. Os bastidores deste espaço tênue entre ambiente esportivo e corporativo era também um autoelogio sobre Hollywood, no caso de como a dedicação e bom artesanato da indústria cinematográfica americana podia impor uma vitória criativa sobre o grande bicho-papão simbólico (a Ferrari, a despeito do título, existe tão pouco em cena quanto Jordan aqui). Ford vs Ferrari era um filme menos excitante do que AIR, nas suas melhores partes, consegue ser, mas também menos vil. Talvez porque seu foco fosse mais na criação do que na venda de uma imagem.

        Diz muito sobre AIR que a atuação mais memorável do filme seja de Chris Messina como o agente de Jordan, David Falk, sempre pronto para soltar um insulto a mais, mas cuja presença permanece maleável, alguém que evidentemente não pode se dar ao luxo de acreditar em coisa alguma além do lucro do cliente. Falk tem seu lugar na história recente do cinema americano, ele foi o grande idealizador de Space Jam, a tentativa de Jordan de fazer a passagem para o cinema, um filme péssimo de popularidade duradoura e um marco do apagamento da distância entre cinema e publicidade. Saber que a principal força criativa por trás do filme é um agente explica muita coisa a seu respeito. 

        Não há nada em Space Jam que se permita existir para além de vender produtos, imagens e pessoas. É um filme infantilizado, enquanto Affleck se orgulha de pensar seu filme como uma resistência de cinema adulto, mas a lógica das suas imagens é a mesma. A sequência final usa um dos maiores sucessos da música americana em 1984, "Born in the USA", de Bruce Springsteen, no mesmo tom edificante que publicitários e políticos conservadores fazem desde a época. Há um desejo irônico de uma última piscadela para o espectador, mas uma que no final das contas, na lógica das aspas, só reforça o teor geral do filme.

        No que cabe a sua relação com a indústria de cinema, AIR é menos uma peça futurista do que um olhar desejoso pelo passado. Algo nítido já no uso constante de referentes nostálgicos sobretudo da incessante trilha sonora que, para além de sucessos da época, como a canção de Springsteen, retoma muitas músicas de filmes de meados dos anos 80: Um Tira da Pesada, Negócio Arriscado, Procura-se Susan Desesperadamente, Dublê de Corpo. Há um desejo de voltar no tempo para uma ideia de Hollywood supostamente mais artística e humana – não à toa um filme de star power não só capitaneado por dois astros veteranos, mas carregado de presenças de cena com Davis, Jason Bateman, Chris Tucker, Marlon Wayans. O presidente da Nike vivido pelo próprio Affleck é o ideal de um chefe de estúdio, preocupado, mas compreensivo, pronto para lutar com o conselho diretivo (sempre mantido fora de cena) para garantir a visão dos seus comandados. O filme alcança seu clímax quando ele resolve arriscar-se e dar a Jordan a sua porcentagem. O triunfo do estúdio saudável disposto a renunciar a parte dos lucros por uma obra maior.

        Se AIR é um filme um tanto deprimente, vem muito justamente desta confusão. Affleck como diretor não é alguém desprovido de talento, o filme se engasga um tanto para conseguir transformar uma assinatura de contrato em espetáculo cinematográfico sem deixar de ser por vezes bastante envolvente momento a momento. Mas, para além de ser uma alegoria confusa, ele se afunda cada vez mais neste espaço em que o portfólio e a criação se misturam na mesma coisa. A sua imaginação de um capital benigno só reforça o nosso inferno.

Abismu, junho/2023

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