Acerca de
O Bom Filho a Casa Torna
O Tubérculo (Dir.: Nicolas Thomé Zetune, Lucas Camargo de Barros, 2024, SP)
por Pedro Henrique Ferreira
Dois elementos metafóricos se impõe sobre O Tubérculo - a 'doença' e a ‘herança' - um justificando sua dinâmica formal e o outro arredondado suas arestas à nível da trama. A primeira delas é a patologia vivenciada pelo protagonista. Como Thomas Elsaesser bem notou, o cinema contemporâneo à nível do campo de autor é repleto de retratos de doenças e de personagens que, em alguma medida, padecem de alguma condição especial que explica sua maneira peculiar de encarar o mundo. Em última instância, são os limites de suas faculdades cognitivas e os estados alterados de consciência que justificam a experimentação formal da obra. O longa-metragem de Nicolas Thomé Zetune e Lucas Camargo de Barros investe num personagem que padece de insônia familiar fatal, uma doença genética rara e sem cura que impede a vítima de dormir. É bem verdade que, em princípio, esta limitação facultativa determina as opções formais do longa-metragem, mas não exclusivamente para submeter o mundo à percepção do protagonista à moda kammerspiel ou, de aproveitá-la para gerar alegorias inconscientes e oníricas à maneira surrealista; estes momentos até existem (o crânio de um boi, a velha avó que surge como fantasmagoria, o cavalo que voa, etc.), mas eles são numericamente inferiores aos dedicados a, pelo contrário, uma expansão da consciência que rompe as paredes do ‘eu' do protagonista rumo a um olhar animista sobre o mundo e as coisas.
O Tubérculo é um filme de superfícies mais do que de psiquês, e que dá a mesma atenção à água de um rio batendo sobre a pedra, às nuvens amorfas ou a uma estátua de São Sebastião que a close-ups dramáticos do seu elenco, e que atesta mais uma certa matéria movente do mundo que as simbologias fixas da representação ou ao olhar afetado de seu protagonista. Para mostrar um telegrama que recebe em Lisboa indicando a morte de sua avó, é menos importante ver como ele percebe o acontecimento que acatar a uma série de ‘vistas' da cidade, o caminhão do correio ou as meras condições do sol. Neste sentido, se há algum flerte com a história cinematográfica da avant-garde, ele talvez tenha mais haver com esta extração poética das coisas empreendida por um Ménilmontant, um Limite ou certos cineastas da avant-garde Norte-Americana; filtrado por um tipo de animismo contemporâneo que encontra correlato em certos exemplares como, por exemplo, um Memória (que é também sobre uma personagem que não dorme e passa a enxergar o universo à partir de semelhante registro), do que, em contraposição, o universo interiorizante de um Lynch, Darronofsky e afins. É um filme que aposta no ‘estranho' de Todorov, utilizando a condição do protagonista para justificar-se; um ‘estranho' causado pela potência fantasmagórica dos elementos mundanos, sua ‘anima’, que encontra uma forte iconografia nas duas aparições da estátua de um dinossauro que se move misteriosamente. Um estranho que às vezes até beira o cômico ou o arquifalso marginal de um Mojica ou Candeias, principalmente a nível de dramaturgia, nos momentos de fala e encenação. Em última instância, não é o personagem e sua condição que justificam as imagens, e sim o contrário, elas que descobrem nele um elemento de representação capaz de metaforizá-las.
Neste sentido, o uso fotográfico da rodagem em super-8 do qual tanto se falou tem menos a ver com a memória lacunar do insone, sua incapacidade sensório-motora de perceber as articulações entre os fatos do mundo ou o seu esquecimento, e mais com o atestado da extemporaneidade de O Tubérculo, a vontade de estar diante de um tempo que é ao mesmo tempo o eterno presente da carne, e tempo nenhum; todas as camadas do tempo juntas e sobrepostas em acúmulo até que não sejam outra coisa que não o puro estar aí. Ele empresta ao filme um ar muito próprio que é ao mesmo anacrônico, de registro familiar, e futurista vindo de um sci-fi, o telegrama e o aplicativo de paquera, as estátuas e as músicas nas rádios. Não importa o lugar ou a hora, o olhar de Nicolas Thomé Zetune e Lucas Camargo de Barros transforma tudo em relicário. No entanto, toda esta potência perceptiva que é certamente o grande achado de O Tubérculo frequentemente esbarra no excesso de explicações dos elementos que movem o seu desenvolvimento narrativo. Não só ele precisa começar e terminar com a reiteração da sua sinopse, como à todo momento ele investe em recursos bem tradicionais de encadeamento, conta-nos uma história com retitude e clareza - quando faz flashback ou projeta a memória de uma personagem, fornece os elementos para que o espectador jamais se embaralhe na sua ‘localização' no espaço-tempo do mundo ficcional erigido. Até mesmo a cena metalinguística, quando mostra os atores a conversar sobre o filme que realizam, serve menos como tática de opacidade que de transparência, para atestar os dados da narração. O ímpeto extemporâneo das imagens concilia-se com um encadeamento linear um tanto clássico, uma coisa obstruindo um pouco a potência da outra. Isto porque o ethos maior do longa-metragem não é o de um enfant terrible iconoclasta quanto o de uma grande e praticamente impossível conciliação de opostos.
Esta moldura narrativa de O Tubérculo dá a indicar o discurso um tanto entrópico, mas de fundo conciliatório da obra, tão abertamente conciliatório quanto o discurso oficial do tempo político ao qual adere assumidamente, o do novo governo Lula. Há uma herança e uma jornada de retorno à terra natal, um fardo da doença genética e o reajuste com o passado familiar. Três décadas antes, G. havia sido expulso de Andradina, uma cidade conservadora no interior de São Paulo, pelo autoritarismo da avó após a descoberta do seu amor homoafetivo por W. Ele passa a viver em Portugal, e retorna após a notícia da morte da avó, vítima de insônia familiar fatal. Como único herdeiro das propriedades rurais, G. vê-se obrigado a ficar nas terras e morar novamente em sua terra natal, quando começam os seus sintomas clínicos diagnosticados como a mesma mazela que a levou a óbito. O tema do retorno do exilado para lidar com o fardo da herança familiar - o filho que torna à casa - é incomum nas últimas décadas do cinema brasileiro, mas ali nos anos da retomada que antecedem imediatamente o primeiro governo Lula, ele apareceu em títulos um tanto mais comerciais como, por exemplo, Lavoura Arcaica (2001), Abril Despedaçado (2001) ou O Príncipe (2002). A resposta que nos é dada ao impasse político e à chaga do conservadorismo brasileiro é aqui um tanto mais esperançosa, às vezes até fantasiosa: a avó se arrepende, o protagonista reencontra o amor que agora pode assumir, a doença é curada e a reconciliação com o passado é enfim concluída. Há de se imaginar se tudo isto não passa de um devaneio otimista, mas a imagem que dá o título à obra fornece a justa medida de como o filme quer enxergar a herança e o passado do país: mais como ‘tubérculo' que como ‘raiz’, potência a se arrancar do solo e que cresce de cima para baixo (e por isto, transforma-se à cada vez) ao invés de uma raiz longínqua, fincada, que sempre há de crescer na mesma direção e produzir os mesmos frutos.
Janeiro, 2024