Acerca de
A Natureza e a Lei
Lista de Desejos para Superagüi (Dir.: Pedro Giongo, 2024, PA)
por Pedro Henrique Ferreira
Ali em meados da década de 1980, a pequena ilha paranaense de Superagüi transformou-se numa reserva ambiental da biosfera e patrimônio da UNESCO. Com a lei federal, o plantio no solo foi proibido e, durante o período de reprodução dos peixes, também foi vetada a pesca de frutos do mar, principal atividade econômica da ilha. Sem outras fontes da renda durante esta época, a população local fica desamparada, e as leis que garantiriam o auxilio temporário para a subsistência são muito difíceis de serem acessadas. Em princípio, o documentário Lista de Desejos para Superagüi parece lançar-se a ilha com dois propósitos aparentes: realizar uma espécie de compêndio etnográfico dos moradores, seus hábitos, rotinas e modos de vida - as pescas, refeições, o dia-a-dia - acompanhados de um retrato em adagio das paisagens litorâneas e dos elementos naturais (a beleza do mar, do sol e da praia), investindo nos chiaro-escuros e na iluminação predominantemente natural; e além disto, revelar as contradições inerentes ao processo de exclusão social dos pescadores através de processos jurídicos, ligações, pedidos de aposentadoria, etc., assomando-se também a encenações dos seus sonhos, aspirações e imaginações que dão o título à obra.
Estas duas aspirações parecem ser um pouco a razão por que Lista de Desejos para Superagüi opera à partir de uma bipartição narrativa que separa o seu desenvolvimento em duas partes: a primeira, intitulada, “Abertura da Pesca” trata da época onde a atividade de subsistência de boa parte da ilha é permitida; a segunda, “Inverno”, mostra um certo limbo em que a população local é colocada na época do ano que a pesca de peixes e camarões não são permitidas. Através dela, o documentário repete um pouco a dinâmica estrutural do mito edênico - o Paraíso e o Paraíso Perdido de Milton -, lembrando um pouco a mesma dialética oposicional do Tabu de Murnau/Flaherty (também sobre uma ilha, a atividade de pesca, a lei e a comercialização), onde primeiro é mostrado o mundo da plena adequação para depois mostrar a sua decadência. Também como em Tabu, a palavra é o que determina a destruição do mundo natural, evoca a lei social e finca uma série de proibições - o papel, o texto, o documento, o contrato e o dinheiro surgem como os mediadores destas relações com o mundo social que lançaram os moradores de Superagüi na miséria.
Não é bem o caso de comparar como que este e um dos maiores filmes da história do cinema desdobram esta dialética que é, em última instância, bíblica. E sim de constatar a nostalgia restauradora que perpassa Lista de Desejos para Superagüi. Enquanto, por um lado, a beleza das imagens - o berço esplêndido - se opõe à violência das palavras e das falas, a opressão do escrito que se insurge contra o mundo iletrado, puramente visual, de uma natureza imemorial, sedutora e imponente, por outro, a tal ‘lista de desejos’ surge como uma espécie de ‘contra-palavra’, a dádiva da voz àquela população para que coloquem ‘por escrito’ (ou em imagens) o que desejam e procuram para o seu próprio mundo, uma lei que é imaginada, mas tão mais real porque provêm não de fora, e sim de dentro daquele próprio mundo, de baixo para cima. As encenações dos desejos impossíveis ganha a conotação de um futuro ansiado, registrados pelas lentes para que existem como uma outra espécie de patrimônio imaterial.
Enquanto o gesto de Lista de Desejos para Superagüi é nobre, ele também lança luz a um certo paradoxo que o ultrapassa. Aquela que surge nas telas é uma ilha majoritariamente composta por pessoas mais velhas que adotam, no mais das vezes, um discurso nostálgico e passadista, o anseio por um modelo de vida pré-civilizacional e associado à natureza - repetem, diversas vezes, que gostaria que as coisas fossem como antes. Assim que se justifica a cena onde a nota de 200 reais é filmada como a folha de uma árvore, muito acusada de ser demasiadamente digressiva quando, no fundo, ela versa sobre a própria alma mater dos habitantes. Mas que regresso ao mundo edênico é este exatamente? O mundo anterior ao estatuto que estabelece a reserva ambiental e, por conseguinte, a proibição da pesca? O mundo pré-civilizacional, em estado de natureza (mas este também é garantido precisamente por aquilo ser uma reserva)? O mundo anterior à produção industrial e à mecanização? O mundo refratário à lei e à palavra? O mundo anterior ao dinheiro (mas não há um personagem que sonha em ser rico?) Qual é, afinal o paraíso, o desejo?
Esta pergunta não é lá tão respondida. Se Lista de Desejos para Superagüi produz uma forte etnografia comunitária e é muito bem sucedido no retrato de um universo visual e sonoro particular da ilha, e se ele tem também a capacidade de dar voz aos anseios de uma população socialmente oprimida, amalgamar o todo de suas vontades e revelar o abismo que existe entre eles e a esfera do mundo legal (o povo e a lei), ele por outro lado carece de levar muito adiante todas as contradições que estão ali latentes nas vontades que ele registra. Isto porque, como muitos outros documentários etnográficos desde ao menos Nanook, mantêm-se um tanto estatuário ao invés de dialético no binômio que mobiliza sua estrutura narrativa (natureza versus cultura ou natureza versus lei), não desenvolve as questões que levanta e contenta-se um tanto em constatá-las. Sem deméritos, enquanto isto não o impede de ser um filme deveras interessante e de qualidade (apenas olhar aquele mundo em alguma medida nos satisfaz), é também o que não o faz ser inesquecível e algo semelhante a tantos outros.
Janeiro, 2024