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A Dialógica do Bastardo 
 

por Pedro Henrique Ferreira

 

1.

 

          É de algum modo significativo que Diálogos com Leucó, de Cesare Pavese, comece com a personagem da Nuvem, a ninfa da mitologia grega, a falar ao audacioso Ixión sobre uma lei pétrea que estabeleceu um limite aos homens. O escritor italiano neorrealista, afamado por suas descrições da Itália agrária, foi criticado pelos seus pares à época do lançamento do livro em 1947 por, fugindo à regra da linguagem regional coloquial e da descrição material da vida camponesa ou do operário no pós-guerra— o "realismo nacional-popular" que a esquerda gramsciana da época defendia -, mostrar um gosto um tanto romântico ao fazer a emulação de conversas entre personagens da mitologia grega, um terreno abstrato e imaginário. Era a mesma crítica que não soube ver o quão o problema dos limites da concretude faziam parte de Stromboli (1950), Viagem à Itália (1954) ou Francisco, Arauto de Deus (1950), dentre outros Rossellinis, não obstante que Pavese tenha deixado clara a sua máxima de "reduzir os mitos à clareza", dar-lhes o corpo e o sentido, despindo-os de hermetismos. A frase é, portanto, uma espécie de sumário inaugural. Pois bem, uns trinta anos depois da publicação do livro, Danièlle Huillet e Jean-Marie Straub retomaram parcialmente os seus diálogos em Da Nuvem à Resistência (1979) pondo-nos um semelhante problema do limite e impotência humana frente ao numinoso, da concretude versus a metafísica. Ele é recitado já no início também, através da mesma frase entoada pela Ninfa, em um plano fechado, a Ixión. Não antes sem nos mostrar um brevíssimo plano-conjunto dos dois, o único no filme inteiro em que vemos uma Deusa e um Humano na mesma imagem: a Nuvem ao topo da árvore e, estacionado perante ela, um Ixión empunhando um machado como que pronto a cortá-la. Depois disso, o limite. A impossibilidade.

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          A "nuvem" como signo é o ponto limítrofe da representação na tradição da perspectiva artificialis ocidental; sua natureza informe, gasosa e nebulosa, não permite à materialidade do desenho e do contorno uma possível emulação. Ao mesmo tempo, ela, curiosamente, sempre figurou na pintura a partir do Renascimento como um desafio, o elemento do mistério transcendental que rompe a ordem científica que fundamenta esta espécie de verdade óptica. Isto porque, no fundo, ela consolida como "em aberto" o sistema que ela mesmo contradiz (Hubert Damisch). Os borros brancos pincelados de forma quase impressionista no fundo da Madona com a Criança e o Menino São João, de Correggio, fogem ao rigor das proporções e volumes justamente para enunciar o espaço infinito de Giordano Bruno contido na representação algébrica da perspectiva; eles nos lembram que, por trás dos estudos ópticos das proporções reais existe uma crença de que o que se descobre da realidade é o seu mistério. De algum modo, é o mesmo problema da representação concreta dos Deuses e do Mito que Straub/Huillet evocaram em Da Nuvem à Resistência, e também em ao menos um punhado de outros dos seus filmes.

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          Muito se escreveu sobre um ímpeto "materialista" no estilo de Straub-Huillet: a concepção da cena a partir de um lugar e altura fixos da câmera no espaço - uma coordenada importante para recobrar um senso de ponto-de-vista único, circunscrito na presença física do aparato diante do mise en scène, e as imagens enraizadas neste eloquente "estar-aí"; o tom declamativo na interpretação de textos de Goethe, Holderlin, Vittorini, Pavese, etc., que impede a adesão do ator ao personagem tanto quanto da dramaturgia à palavra, com o minucioso trabalho de entonação que nunca afasta o espectador da "origem" material do texto [em Antígona (1992), de Sófocles, na tradução de Holderlin, tal como foi adaptada à cena por Brecht, eles fazem-nos percorrer a genealogia do texto que deu gênese ao filme, como um gesto de inserção da tradução na dialética da história]; a insistência no uso somente do som direto e a montagem disjuntiva, que corrói o senso espacial-geográfico pleno e permite gaps entre um plano e outro (mais que meras elipses, faz-nos ver a sutura em momentos de diálogos e plano-contra-plano), dando-nos a ver a "diferença" essencial que registros captados em temporalidades diferentes produzem - a diferença que a montagem em continuidade do cinema clássico e sua quimera do "narrador onisciente", em princípio, estaria sempre disposto a ocultar - em longas-metragens majoritariamente rodados a céu aberto, onde esta passagem do tempo ganha ênfase mais robusta; uma composição estatuária e uma forma de angulação que torna os corpos humanos mais volumosos, como que blocos de concreto em meio ao espaço. Assim, o "trabalho" de adaptação e realização é evidenciado no produto do qual ele resulta. Estas táticas são normalmente associadas a um certo minimalismo antiespetacular e uma pedagogia brechtiana da imagem dialética, que prega um desaprendizado para se aproximar de forma mais livre dela e permitir a revelação de "um sorriso fugidio".

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          Só que esta descrição que lhes garantiu talvez um lugar específico na história do cinema, associado à radicalização cinematográfica extrema e a politização do momento pós-68, quando tais estratégias ganhavam ares utópico-revolucionários e produziam uma tradição de contracorrente no cinema moderno e autoral, elas talvez também omitiram um outro lado da dupla que não tem nada de moderno, iconoclasta ou "desconstrutivo". Um que é menos brechtiano e mais classicista e holderlinniano, ainda experimental, é vero, mas mais abstrato e ficcionalizante, elegíaco, ao invés da concretude documental e do registro do esforço de resistência da matéria de que se habitualmente fala. Não digo apenas das suas referências à Grécia e Roma Antiga, nem dos Empedócles, Antígonas, Júlio Césares, Othons, Bach, etc…, e tampouco das recentes empreitadas de torná-lo um John Ford do modernismo político (embora, de algum modo, até assim sejam - ver o texto de Dalila Camargo Martins ou de Tag Gallagher), e sim de artesões cujo estilo faz conviver uma tensa e particular dialógica entre matéria e espírito, natureza e civilização, mito e história. O lado dos autores que, como Pavese, reduziam tudo à materialidade com a convicção que, mesmo assim, em algum lugar ainda sobrariam as nuvens.

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2.

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          Uma das maiores bilheterias do cinema alemão na primeira metade dos 1950s foi um heimatfilm chamado Grun ist die Heide (trad.: Verde era a Charneca, 1951), dirigido por Hans Depp, na pioneira Berolina, produtora que seria responsável por movimentar o gênero de maior popularidade do país no período de reconstrução e milagre econômico. Depois dos trummerfilms ("filmes de ruína’") que evidenciavam uma Alemanha devastada no período da ocupação dos aliados, o cenário era transplantado para um de otimismo e escapismo - as florestas campestres e suas comunidades regionais. O lugar mítico deveria representar uma nação originária, pacífica e inviolada pela falta de rumo civilizacional, e na qual o povo germânico poderia esquecer o que se passou e se livrar dos seus traumas; a floresta que sempre foi tema privilegiado da cultura alemã como local de cura e/ou conversão (sejam as de Goethe, as de Heidegger, ou as de O Jovem Hitlerista Quex, de Hans Steinhoff, 1933). Na primeira imagem do filme, um grupo de musicistas caminha livre e alegremente pelas charnecas, tão míticas e plenas quanto a Irlanda ou o Velho Oeste imaginado de John Ford. Logo descobriremos duas coisas importantes: primeiro, que o campo é um local em reconstrução, e que a vegetação e a fauna estão sendo replantadas e criadas, ao invés de um lugar originalmente intocado; depois, que a população local é toda feita de migrantes e exilados, que não há também povo originário. A floresta de Grun ist die Heide é, na própria narrativa, a natureza e comunidade imaginariamente produzidas para que o senso de identidade de um país implodido pudesse renascer, no período histórico da Alemanha Ocidental não raro chamado de "reconstrução". Não demorará, também, para que conheçamos o vilão do filme - um caçador anônimo que, à noite, sofre de uma compulsão por caçar animais e, assim, involuntariamente, ameaçar o sonho em processo.

 

            Era neste tipo de imaginário reacionário onde ondulavam os heimats da década de 1950 - o mito da comunhão civilizatória e a celebração da natureza como grau zero da reconstrução individual e coletiva - que o Neuer Deutscher Film se lançou a destroçar. Em Fata Morgana (1971), por exemplo, Herzog nos relembra a ilusão da paisagem desértica, tomando o mito romântico que vai novamente evocar nos sonhos do protagonista exilado em O Enigma de Kaspar Hauser (1974) como a ilusão movente de seres delirantes; paisagens que ele pegou de um outro Casper, o romântico Friedrich. O solitário esquisito, anti-social e migrante, despido de um senso de identidade unitária que era sua chaga em Grun isto die Heide, ou ao menos uma situação dramaticamente sentida na Alemanha pós-muro nos filmes de Helmut Kautner, é fortemente tematizado e reconectado à sua gênese romântica por um punhado de filmes de Wenders, pelo Eu te Amo, Eu te Mato (1971) de Uwe Brandner, etc. A associação de Straub/Huillet aos problemas do Novo Cinema Alemão e à sua relação com a cultura germânica são frequentemente diminuídas, em parte, pelas declarações dos próprios autores que, ao ver a defesa de um cinema estrita e radicalmente moderno sendo empreendido por Kluge e cia, pouco se identificavam. Em outra, porque é difícil mancomunar cineastas erradicados da França, e que também estenderam uma significativa parte de sua cinematografia na Itália, a questões ou a um estilo especificamente nacionais.

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          Só que, para além do fato de que em muitos dos seus filmes figuram florestas, este mesmo "estrangeirismo" em dialética de choque para com a sociedade - não raro um "filho que torna à casa" - é também tematizado na obra do casal (e não apenas como mera autorreferência biográfica da errância cinematográfica dos dois) - no Empedócles de A Morte de Empedócles (1987) no homem que retorna de Gente da Sicília! (1999), no motorista perambulante de Lições de História (1972), que parece ter saído precocemente de um futuro filme de Kiarostami para se deparar com a narrativa de um outro migrante Júlio César, e em Crônica de Anna Magdalena Bach (1968), no qual, como já antes se escreveu, o gênio que toca solitário em um plano é justaposto logo por outro do espaço e do público para onde sua música se produzia. Este semelhante personagem é o protagonista da segunda parte de Da Nuvem à Resistência, bebida de outro livro de Pavese, A Lua e as Fogueiras: o "Bastardo" que retorna à terra natal depois do exílio. O Bastardo volta ao vilarejo, vagueia pelos campos saudoso das paisagens e percebe uma terra arrasada. O que foi outrora experiência comunitária perdeu-se. Os resquícios do fascismo estão lá nas entrelinhas, qual a sobrevida nazista denunciada em Não-Reconciliados (1965). Camponeses talvez vivam no cada-um-por-si que lhes sobrou, qual o jovem operário de Eles Não Usam Black Tie (Leon Hirszman, 1983). As fagulhas de enfrentamento aos senhores verte-se rapidamente em insanidade e solidão. O fim de um projeto utópico de resistência. O coup de grace do modernismo político. Loucura e resistência? Como o homem que ateia fogo a si mesmo para sair da inércia em Nostalgia (Andrei Tarkovsky, 1983)?

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          A condição sine qua non do sentido de sua errância pelos espaços é uma memória. O "Bastardo" de Pavese lembrava do passado da comunidade rural no entre-guerras, enquanto o de Straub-Huillet lembra da resistência ao fascismo. Mas também lembra, na verdade, do "Bastardo" de Pavese. Ele é também metáfora espectatorial: do que lembramos ao ver os campos? O que uma nova fábula (a segunda parte do filme) faz-nos recordar da anterior? E o que uma imagem, reduzida a seu estatuto material mais profundo, nos faz lembrar de outra que veio antes, também no apogeu de seu isolamento na cadeia do discurso? A operação me parece chave ao cinema de Straub-Huillet. E é este ato intangível da memória que faz reerguer da morte da carne o monumento dos Deuses: a imagem final, um belo campo vazio ao pôr-do-sol, inerte e pavido, como tudo no cinema do casal. O relato de uma mulher assassinada durante a resistência vem-nos dizer que ali jaz o seu corpo. Acima dos campos, mais imponente que ele, o sol se pondo num céu de alvorada. Talvez, quiçá, também umas nuvens, em contraluz, na parte superior da imagem?

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3.

 

          Podemos falar muito sobre o processo de rarefação materialista em Straub/Huillet e sua ojeriza a qualquer espécie de trompe l’oil; sua resistência à camada simbólica das coisas ou também da maneira como distilam os elementos filmados até despi-los de uma significação, restando apenas um significante desaclopado que nos põe no vácuo interstício entre duas coisas - o que é e o que aquilo pode também ser -; em suma, a palavra e a coisa. Podemos também insistir que os planos justapostos em temporalidades diferentes, ou que os atores recitando textos mecanicamente, não nos garante a imersão ficcional e a calorosa diegese naturalista, e isso nos revela a verdade do que a dramaturgia cinematográfica sempre, por natureza, é: atores replicando gestos escritos e proferindo frases que não são suas. Este é o Straub/Huillet dos sintomas e das desconstruções. Mas isto me parece pouco. Não é esta - a distância da sutura - aquela que o "Bastardo" não pode percorrer. Quando, no final de Da Nuvem à Resistência, observamos o campo onde foi enterrado o corpo de uma anti-fascista, e uma voz em off narra-lhe o relato da memória, não há separação entre coisa e sentido, e sim, ao contrário, o ato de atribuição de sentido a uma paisagem morta. É ressignificação através de uma memória que ali jaz. Quando em Othon (1970) vemos a Roma moderna ao fundo, ou quando em Lições de História, o motorista percorre os corredores presentes das antigas senzalas das quais os menestréis romanos falavam, isto não quer dizer apenas que tempos históricos assíncronos coexistem, e nem que um conhecimento genealógico nos é fornecido. O campo está lá, qual as ruínas de Roma ou os cortiços. Mas a matéria ultrapassa o seu estatuto de Terra porque é acoplado a uma memória.

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          A "lição" pedagógica aqui é a mesma que nos ensina quando põe um ator a fazer recitação, e depois, na imagem seguinte, põe outro, também a fazê-lo. É vero que ambas as imagens reivindicam sua gênese como fruto de um ‘porta-voz’ atual, que, estatutário, enfatiza sua presença – a carne do corpo, o brilho da luz, o ruído da voz. Mas depois lembramos que o que o segundo porta-voz fala é ainda uma resposta ficcional ao primeiro. Que entre os registros inconciliáveis das performances da Nuvem e de Ixion, resiste ainda uma ficção que deu origem ao texto. É coisa simples: no cinema, a camada material sempre insiste em "significar'". Portanto, o que "amarra" duas imagens (ou uma imagem e uma palavra, ou o corpo presente do ator e a palavra histórica recitada) não é "dialética", resultado da diferença, choque de tensões oposicionais (não obstante elas existam), e sim o elemento de semelhança, o fato de que uma frase dita por um responde ainda à do outro. É diálogo.

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          Voltemos à primeira cena de Da Nuvem à Resistência: o breve plano conjunto entre a Nuvem e Íxion que some para nunca mais aparecer. Começamos já na rotura, na diferença (como dizia Baudry, o cinema sempre começa já aí, na fragmentação). Deuses e humanos estão agora separados em planos-e-contra-planos que não nutrem sequer a esperança de uma falsa geografia comum. Só os anjos têm asas, disse Hawks. Nós - humanos - estamos na Terra. Mas o verdadeiro milagre é que, por algum diabo de motivo, as duas raças ainda estão juntas, ainda mantêm uma recôndita do momento inaugural. Na resposta do outro, lembramos da fala do anterior. É por isto que os dois filmes em um 'dialogam'. O cinema, a máquina "politeísta" de Epstein, insiste, ainda e sempre, em significar. Ele enterra aquilo que filma, mas também faz-lhe sobreviver para a eternidade, nas nuvens, onde só a matéria gasosa sustenta o peso da gravidade.

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                                                                                                                                                                 Maio, 2023 

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