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Acerca de

A matéria do que são feitos os sonhos

Mato Seco em Chamas (Adirley Queirós e Joana Pimenta, 2022, Brasil)

por Pedro Henrique Ferreira

           Mato Seco em Chamas conclui uma trilogia feérica e mórbida do Brasil do hiato - o início, meio e fim, para usar o chavão de Cristiano Botafogo, "desta bad trip escrota em que a gente se meteu". Ele se soma à estasia distópica de Era Uma Vez Brasília (2017) e, antes também, ao looping lemniscático de Branco Sai, Preto Fica (2014), para nos revelar um país que prometeu ser diferente em 2013, mas simplesmente não pôde porque as forças do reacionarismo eram maiores. Os três trazem registros temporais particulares que dão expressão às lógicas de suas etapas. No primeiro, o viajante do tempo voltava ao passado para fazer justiça a um massacre num baile de charme, mas, à medida em que age, o que acontece é que a ditadura evangélica avança no futuro, como a nos dizer - já em 2014 - que o esforço capilar de salvaguarda e justiça histórica poderia gerar retaliação, e que o Brasil seria assim um país do eterno retorno cujo destino mais que necessário era a sua própria implosão. Se, no primeiro, o desesperado ato messiânico de destruição da nação inviável portava ainda os restos da crença no gozo da vitória, no segundo a promessa de silenciamento se concretizou. Em Era Uma Vez Brasília, Adirley/Joana fazem um filme sobre o sentimento de luto e paralisia após o golpe de 2016 e a impossibilidade de se sair do lugar; seu filme mais duro e anticlimático. O terceiro estabelece um registro temporal ligeiramente diferente dos dois anteriores, na medida em que alterna entre uma camada da memória e outra do presente, uma Sol Nascente de outrora onde duas irmãs tinham a liberdade para extrair petróleo e produzir um mundo à margem do oficial, e outra onde o militarismo policial impôs seus limites, uma alusão política demarcada diretamente pela intrusão na ficção de imagens da celebração bolsonarista. 

          Os signos comuns aos três filmes também estão todos lá: as fogueiras, estradas e acres de terra e mato vazios, os carros e vans enferrujadas, galpões no meio do nada, os corpos negros e periféricos numa Ceilândia que é satélite e metáfora dos excluídos da capital oficial; um arcabouço de imagens que remetem às ficções científicas, mas que passaram a constituir o repertório de um mundo próprio e autoral de Adirley Queirós e Joana Pimenta (diretora de fotografia em Era uma Vez Brasília e também diretora em Mato Seco em Chamas). No entanto, Mato Seco em Chamas também retrabalha a mesma iconografia de forma um pouco mais polida e estruturada, consciente dos seus cacoetes e da magnitude deles, e talvez por isso menos imediatista e libidinal; ele, por exemplo, aposta mais que os outros em depoimentos e articulações narrativas que deixam às claras o que está em jogo, de uma maneira que nem Branco Sai, Preto Fica, nem Era Uma Vez Brasília faziam - nestes, os corpos e a presença material das coisas precisavam, muitas vezes, ser o verdadeiro portador do discurso. Isto talvez se explique porque o longa-metragem é uma ode a um paraíso perdido, a história da lenda das gasolineiras, duas irmãs, Léa e Chitara, que descobrem petróleo em um lote de terras da Sol Nascente e passam a coordenar e negociar com entregadores a distribuição de gasolina. Há nele um duplo jogo entre o saudosismo do que foi (ou poderia ter sido) e a consciência de uma impossibilidade da manutenção do mesmo estado das coisas - considerando que a região passou agora a ser cerceada pela atuação policial - que se soma, em última instância, a um desejo inquebrantável de seguir, de algum modo, dando continuidade ao que parece impossível.

          É um pouco lugar-comum dizer que o cinema de Adirley Queirós parte de um exaustivo choque corpo-a-corpo com o real para transformá-lo em fabulação, mas o procedimento é particularmente especial porque, mesmo quando isso acontece, a camada material de onde ele provêm nunca esmaece. Em outras palavras, o processo de significação - aquele em que o modelo "xerocado" em imagem desconta sua indicialidade para adentrar o reino do discurso - aqui nunca é completamente levado a cabo. É como se a câmera jamais o permitisse. É por isso que Mato Seco em Chamas, embora beba do cinema de gênero e da ficção científica, jamais pode se tornar Mad Max senão tê-lo como referência longínqua: os corpos reais, suas histórias e as paisagens que ele filma são muito mais importantes pelo que elas próprias significam em sua materialidade testemunhal do que pelo que podem contribuir como embuste ao ato de instauração do mundo fantástico e "ficcionalização", isto é, como atores que simulam personagens e regiões que fingem ser outras geografias. 

          Também é habitual falar em uma certa teatralidade dos atores numa espécie de espaço amorfo, e da aposta num manancial de poses e gestos artificiais de caráter performático como reveladores de uma mais-valia da presença; que os corpos que vagueiam em paisagens desérticas na sua obra atingem no máximo um aspecto de "esboço" de um ser (um constante vir-a-ser que jamais repousa no ato da performance), tanto quanto os homens-gorilas, cegos mafiosos ou dançarinas espanholas de Bang Bang (Andrea Tonacci, 1971), os moradores à beira do Tietê em A Margem (Ozualdo Candeias, 1967), ou ainda os seres cambaleantes de Jardim de Espumas (Luiz Rosemberg Filho, 1971). Só que também disto é preciso discernir, porque o procedimento de Adirley Queirós - qual o de uma série de filmes brasileiros contemporâneos (Batguano, Inferninho, etc.) - faz, na verdade, o inverso que o dos seus pares marginais: os corpos e espaços reais realçam-se "a partir" das fabulações, e não o contrário; desgarram-se delas pelo jeito como a câmera se porta e demora-se observando os rostos, gestos, vozes e trejeitos de cada uma delas, isto é, por uma série de estratégias cinematográficas e estéticas para fundar esta sua numinosa paisagística dos espaços e retratística do corpo. Não é uma encenação que produz uma adesão incompleta entre o fingimento do ator e o ser do personagem, e sim uma distilação rarefeita do encenado para se atingir o corpo real que produz o ato de dramaturgia. Mesmo fantasiando, Léa e Chitara não procuram ser outra coisa que não elas mesmas, e é o peso dos seus corpos que se faz sobressalente da história inventada, do mesmo jeito que não é por um erro de cálculo que os ambientes das satélites de Brasília não se tornam pujantes refinarias de petróleo (sua artificialidade mesma nos mostra a impossibilidade que as coisas filmadas sejam outras coisas que não elas mesmas), e sim porque são estes mesmo objetos que decaem da ficção para se tornar objeto de escrutínio do olhar, mais-valia artística.

          A partir do momento em que há este descolamento (e não distanciamento no sentido brechtiano, isso nunca ocorre), e um ganho da autenticidade física contra a narratividade, não resta outra coisa para a ficção que não se tornar uma metáfora do mesmo. Daí que, se as imagens de Mato Seco em Chamas nos mostram, na maior porção do tempo, uma soma de paisagística e retratística, as articulações ficcionais que emergem aqui e acolá promovem uma representação de natureza simbólica: o  "petróleo" desde a campanha varguista evocado como símbolo do protecionismo versus a colonização do imperialismo, Joana D’Arc/Chitara como lendas feministas, Brasília como símbolo modernista e de um projeto de país, o lote de Sol Nascente e o conjunto habitacional como da periferia dos excluídos… A prisão como purgatório da dialética controle/liberdade. Mas justamente porque as estratégias cênicas do filme realçam a matéria e aparência das coisas, nada disso faz com que o filmado torne-se mera abstração discursiva e intelectualoide; pelo contrário, sublinha a força que os próprios elementos já têm por si só. É um cinema cujo verdadeiro ato de empoderamento é dar aos corpos a presença no mundo mais que, como habitualmente se fala, fantasiar o mundo ou imaginar suas vitórias ou resistências.

         O cinema de Adirley/Joana sofre do mal de ser terceiro-mundista demais para receber os louros que merece no circuito de festivais europeus, um panteão onde deveria estar ao lado dos maiores do presente. Ele não tem o filtro humanista e embranquecedor, e seus filmes áridos, modorrentos e periféricos soam um tanto quebra-clima. Além disso, porque seus filmes não são simples "atos de empoderamento" (de alguma maneira, Branco Sai, Preto Fica foi equivocadamente transformado nisso), e sim um retrato de esfinges da derrota ou do estar-aí à margem, eles também não ficam associados necessariamente ao ativismo ou a uma espécie de revenge porn periférico e terceiro-mundista - a "violência" da qual a estética da fome falava, hoje, suscita o prazer masoquista do colonizador e é aglutinada como norma. É um cinema material, cuja grande força, ou grande violência, acaba por ser mostrar o que existe sem fantasiá-lo; apesar de, mesmo para isso, recorrer à imaginação. Extrair um do outro para poder falar suas verdades.

Abril, 2023

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