Acerca de
Os Limites do Discurso
Eu Também Não Gozei (Dir.: Ana Carolina Marinho, 2024, SP)
por Pedro Henrique Ferreira
O documentário Eu Também Não Gozei aborda um tema de importância essencial, menos conjurado do que devia num país onde 11,6 milhões de famílias são formadas por mães solo, que é o do abandono paternal. Ele procura fazê-lo um pouco à moda do realismo crítico, através do ‘caso exemplar’: Letícia Bassit é uma jovem atriz de classe média-alta, na casa dos 30, que descobre-se grávida, mas não tem certeza de quem é o pai. A mulher procura as quatro possibilidades que lhe mais plausíveis, mas apenas dois deles dão-lhe algum retorno, enquanto os outros a ignoram. Começa aí uma panacéia pela descoberta do pai, um processo exaustivo de busca da identidade que atravessa todo o parto. Em 2019, Letícia já havia publicado um livro que trata do período de gravidez, sob o mesmo título que é inspirado na resposta que um dos homens dá a ela (na verdade, a sua réplica). A cineasta Ana Carolina Marinho documenta o momento posterior ao nascimento do filho, o período de adaptação e a jornada atrás dos testes de DNA que possam fornecer a comprovação da identidade.
A estratégia documental de Eu Também Não Gozei firma uma absoluta adesão ao seu tema (o do abandono paterno) semelhante ao que fazem alguns filmes ativistas como Toda Noite Estarei Lá ou Na Missão com Kadu, por exemplo. A câmera alia-se ao personagem, acompanha-no no dia-a-dia e na sua jornada, mas não só: vivencia a situação como cúmplice direto. Aquela por trás das lentes é participativa, sua voz surge no fora-de-campo, dialogando com a personagem, refletindo e indignando-se diante das situações que acompanha à partir dela. Não há um olhar distanciado, seja por frieza, reverência ou respeito; e sim um que reverencia seu objeto como a representante eleita do problema social e de gênero. Em parte, é claro, isto se deve ao fato de Letícia participar da própria realização, mas esta proximidade moral não significa, na prática, apenas a adesão à causa da protagonista. Há também um certo esforço de transformar os acontecimentos pró-filmicos e o material captado à partir deles para moldá-los ao discurso mais amplo da obra. Este desejo de imprimir sobre a realidade o conceito numérico e extensivo que parece lhe conter é o que, para o bem e para o mal, faz de Eu Também Não Gozei um filme-tese. O paroxismo disto é uma cena onde a realizadora dialoga com a personagem sobre o que é que o filme é sobre: a instância narradora oficializa o sentido da obra, não deixando brechas para que a realidade se imponha.
É claro que esta postura, o esforço de submissão do mundo pró-fílmico à idéia, que acontece mais frontalmente na primeira metade do filme, torna tudo um pouco previsível e enfadonho. As encenações todas (dela entoando uma canção de Ataulfo Alves em frente ao espelho, das sequência onde está no teatro atuando, dentre outras) estão lá como muletas poéticas para repetir o lema-síntese do discurso. O que incomoda não é apenas a reiteração, pois é mesmo necessário repetir certos temas na medida em que eles seguem sendo verdades um tanto ignoradas. É o fato de que acaba que a realidade passa a ter dificuldades de falar por si só, quando há alguém o tempo todo se esforçando de falar por ela. As contradições desaparecem, assim como o desenvolvimento dialético do que é visto. A imagem beira o didatismo, no mal sentido, e o filme acaba por tratar seu espectador um pouco como um ignorante - foi o que sempre aconteceu nestas estratégias mais enraizadas do realismo crítico.
Felizmente, Eu Também Não Gozei consegue fugir um pouco disto na sua segunda metade, e é quando a obra ganha uma renovada força, um salto qualitativo que faz com que ele sobreviva a seus pontos fracos. As imagens tornam-se um pouco menos verborrágicas, um pouco menos ventríloquas de seu tema, e dão espaço para que os sentimentos de Letícia sejam mais eloquentes que qualquer coisa. Sai de cena a disfarçada idolatria da maternidade solo e surge o sofrimento cotidiano de Letícia, sua panacéia sem fim que vai-se tornando uma espécie de purgatório, inclusive diante à lei, contraposto aos momentos de intimidade e carinho com o filho. Surgem as contradições mais enraizadas e fortes do problema do ‘pai ausente’ que afetam não só o filho, mas à mãe também; por exemplo, o respiro e respeito da câmera diante do choro de Letícia perante o evidente desejo de que o menos mal dos homens fosse o progenitor, e depois a alternativa que parece pouco esperançosa a ela na refundação da família sob outras bases, morando e dividindo apartamento com outra mãe. É aí que o filme ganha em riqueza, complexidade e desenvolvimento, tanto afetivo quanto em termos de força de discurso.
São estes momentos que verdadeiramente nos mobilizam contra o problema do abandono parental. Talvez a questão tenha a ver com a mesma e velha diferença entre o dizer e o mostrar no cinema. Muito se fala numa posição ética da câmera diante do objeto documentado, diante do seu tema. O que diz respeito, é claro, a como respeitá-lo, não tratá-lo com crueldade, indiferença ou frieza, dentre outras coisas. Frente a tantas exigências morais, existe uma que às vezes é um pouco esquecida: a da liberdade, a de deixá-lo ser o que é.
Janeiro, 2024