Acerca de
Dia 4: Violência e Resiliência
Puentes en el Mar (Patrícia Ayala Ruiz / Colômbia e México, 2022)
Toda Noite Estarei Lá (Dir.: Tati Franklin e Suellen Vasconcellos / Espírito Santo, 2022)
por Pedro Henrique Ferreira
O último dia da ‘Territórios' põe nas telas dois filmes cujas temáticas giram em torno de histórias de violência e de resiliência diante das adversidades, assumindo o drama de suas protagonistas como epicentro. São duas obras que exploram com sutileza o aspecto emocional do sofrimento, sem transformá-los num exercício de sadismo, e sim apostando no tour de force de seus agentes e naquilo que eles podem significar para as bandeiras identitárias e de militância que levantam, nem por isto deixando de lado um apuro estético que ajuda a construir as situações retratadas. Puentes en el Mar se passa na região portuária de San Andres de Tumaco, no bairro costeiro de El Bajito, onde, de início, acompanha o drama individual de uma matriarca e a relação hiper-protetora com a qual trata o seu filho adolescente, ambos afrodescendentes de origem humilde, e o desejo à todo custo de controlar o jovem e impedir que ele seja convocado pelo narcotráfico que parece assolar o local.
O esforço de conjugar suas figuras ao espaço social, ao contexto econômico, às palafitas e pontes de madeiras onde habitam, é afastado de qualquer abordagem antropológica graças ao olhar mais humanístico e atento aos dramas no qual a câmera de Patrícia Ayala Ruiz investe. Embora ele se estruture muito através de planos-gerais que adensam a paisagem da região, ele retira mais sua força dos close-ups aflitos da mãe ou frustrados do filho, enraizando a experiência de vida deles no lugar, mas ao mesmo tempo, à moda neorrealista, pondo os sentimentos individuais ao centro nesta dialética entre sujeito e mundo. Assim, a primeira parte do longa-metragem dedica-se quase que inteiramente ao medo da perda vivido pela mãe que parece verter-se rapidamente em neurose e desejo de controle sobre o filho. Depois, na segunda parte, ao sentimento de inferioridade do moleque diante dos outros, sua angústia e ensejo por ser outra pessoa em outro lugar.
Nem sempre Puentes en el Mar consegue extrair toda a força que poderia do seus personagens. Em parte porque a situação realística da mãe demora muito a engrenar (a rigor, só no final isto ocorre), o que faz o seu drama girar em falso e objeto de pouca adesão; se não temos a exata medida do seu temor, seu rondar obcecado por um retorno telefônico do filho parece mesmo só um excesso de protecionismo e nóia (se é que, na prática, não é isto mesmo). Uma série de planos com mudanças de foco das lentes um tanto voláteis - uns mais hábeis que conseguem enriquecer os detalhes da cena, outros tão literais que atrapalham (a mulher atravessa a passagem e a câmera deixa a distância focal se fixar num peixe morto) - parecem anunciar a mudança de foco narrativa prestes a acontecer. À partir do momento em que saltamos ao ponto-de-vista do filho, Puentes en el Mar cresce um bocado, pois seus afetos parecem mais ‘enraizados' num modo-de-vida que antes (a frustração com os amigos, a vontade de liberdade, etc). É quando o longa-metragem de estréia de Patrícia Ayala Ruiz atinge o seu zênite, que depois só é reconquistado mais para o final, na bonita comunhão que as mulheres firmam entre si, ajudando-se mutuamente à sobrevivência, à perda e ao luto diante de uma realidade que lhes é eternamente madrasta.
Puentes en el Mar é talvez o filme mais ‘correto' da Territórios, tanto em termos de distribuição formal (é tecnicamente muito bem acabado) e narrativa (conecta seus pontos de virada com muita perspicácia), quanto em uma certa convencionalidade do narrar e do mostrar. A escolha pela abordagem intimista de personagens periféricos é um prato cheio para um cinema contemporâneo que investe cada vez mais no olhar sobre a vida destes com açúcar e afeto, uma espécie de ressurgência neorrealista à luz da remissão a povos excluídos do mundo. A oscilação não ajuda tanto o filme, e ele padece um pouco de usar o fenômeno do narcotráfico como uma certa muleta mais genérica da trama, ficando o retrato mais incompleto das opressões cotidiana o seu calcanhar de Aquiles. Não obstante, ele consegue extrair momentos de verdadeira força e afabilidade do tour de force seus personagens, e, principalmente no final (seu apogeu), nos mostrar um mundo comunitário fadado à desgraça que sobrevive em resiliência graças a ajuda mútua daquelas mulheres que se reconhecem como mães.
Enquanto o tom da resiliência em Puentes en el Mar é bem mais lírico, o de Toda Noite Estarei Lá é mais tiro-porrada-e-bomba e de militância frontal; mais alegre e mobilizador apesar de doído. O único filme brasileiro da competitiva, de Espírito Santo, documenta o processo jurídico de Mel do Rosário, uma mulher trans evangélica que é violentamente expulsa pelo pastor e vexatoriamente proibida de frequentar a sua igreja depois de transicionar. E também os desdobramentos desta situação: uma vez conquistado o seu direito no campo legal, ela vai toda a noite com cartazes ficar à frente da entrada do culto para evidenciar o ato de transfobia e requerir os seus direitos - o ato que entitula a obra. Além disto, para além das cenas associadas à disputa judicial propriamente dita e às manifestações ativistas de Mel, o filme também retrata alguns poucos mais momentos cotidianos que enfatizam os seus encontros com conhecidos no bairro, uma festa de aniversário com a família, momentos de reza no seu salão de beleza, etc. No entanto, o arco narrativo do longa-metragem de estréia de Tati Franklin e Suellen Vasconcellos organiza-se menos como um afresco de um personagem específico (e que personagem!) que em torno do fluir do tempo, o desenrolar do caso ao longo dos anos, em associação direta com a história política do Brasil entre 2016 e hoje. Há inúmeras menções diretas ao impeachment de Dilma e à ascensão do bolsonarismo, seja nos comentários da protagonista, seja através das inserções que são feitas na obra com esta intenção, que nos conduzem a acompanhar o desfecho do caso à luz de uma memória coletiva do que foi o Brasil dos últimos anos.
A escolha deliberada de tornar a história de Mel a metonímia da vida política nacional é o que faz Toda Noite Estarei Lá um forte libelo, uma peça de mobilização que encontra na protagonista um parabelo de resiliência. À todo momento, ecoam palavras de ordem contra a violência discriminatória dos pastores e seus lacaios, e a forma como oprimem a mulher trans ganha a centralidade da narração; quando não é capturada nas imagens, no desconforto que os seguranças e frequentadores sentem diante de sua presença, no silêncio de suas reações ou na recusa a aparecer nas filmagens, o longa-metragem recorre a ligações de telefone onde Mel explica os últimos desdobramentos da ação jurídica ou que foi expulsa novamente do culto. A câmera de Franklin e Vasconcellos opera na emulação da mesma resiliência da protagonista, conforma-se à sua presença e ação - quando é proibida de entrar no culto, fica do lado de fora à espera de Mel para registrar a sua saída; quando não tem autorização para filmar no escritório onde se desenrolam os encontros do processo, fica sentada diante da porta à espera, grava o som de forma clandestina e apreende momentos reveladores de como o senso comum também é extremamente transfóbico.
Esta opção que o filme faz da heroificação de Mel é uma faca de dois gumes: se por um lado ele mapeia tanto a violência que vitimiza a população trans, quanto evoca a memória afetiva do espectador em relação àquilo do que o Brasil padeceu entre o impeachment de Dilma e o desgoverno de Bolsonaro, e com isto atinge uma grande força de eletrificação, por outro, ele termina por não acessar nem as contradições de sua protagonista. Nada do seu lado mais humano e ordinário surge nas telas que não seja mediado pelas intenções militantes mais assoberbadas e pela frequente performance da resiliência. Tratando-se uma figura tão complexa quanto Mel - evangélica progressista que advoga pelos direitos humanos num ambiente frequentemente associado à direita mais reacionária - isto parece uma grande perda, se só nos deixa a imaginar o quão maior Toda Noite Estarei Lá poderia ser. É claro, seria outro filme. Não obstante, a riqueza da presença da protagonista diante às lentes da dupla de diretoras que são hábeis em sondar o seu significado político é o suficiente para tornar este longa-metragem de estréia uma peça forte e algo encantadora. Através da montagem e condução narrativa, conseguem evocar o sentido do que foi o lado mais perverso e desumano do conservadorismo político que assolou o Brasil dos últimos anos, e encontrar um exemplo raro de resiliência mesmo diante de todas as adversidades.
Revista Abismu - Outubro, 2023