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Dia 3: A Arte do Purgatório

A la Sombra de la Luz (Isabel Reyes e Ignacia Merino / Chile, 2023)

Diógenes (Dir.: Leonardo Barbuy / Peru, França e Colômbia, 2023)

por Pedro Henrique Ferreira

          O investimento em produzir a sensação de se estar em um purgatório, a danação em um local longínquo, através de um rigor formalista e da experimentação com o devir temporal, parece perpassar ambas as obras exibidas no terceiro dia da 'Territórios'. Este tipo de acometimento aproxima estes filmes de um certo cenário do cinema contemporâneo onde a tessitura da forma e seu jogo com efeitos de superfície visual, um interesse pela epiderme da imagem que torna-se quase dissolução do próprio signo, parece ser o objeto central de investigação (slow cinema, cinema experimental de genealogia estruturalista, ou seja lá qual nomenclatura for dada ao fenômeno), embora ambos os filmes operem isto em lógicas bem diferentes.

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            De início, A la Sombra de la Luz parece se organizar como um documentário observacional de um vilarejo chileno pouco habitado, com um imenso feitio da natureza, que convive com uma usina termoelétrica que abastece o resto do país. O tema que começa a se desenhar desde as primeiras imagens - onde um menino que brinca de caçar coelhos, em planos gerais meticulosamente compostos que alternam enfatizar a virgindade da natureza nas árvores, no vento e nos animais, e a presença das torres elétricas, dos fios de alta tensão e dos transformadores - é o deste contraste e suas implicações, a vida pacata e ambiental contra a indústria que lhe viola. É um retrato daqueles que, como se acerca o título, vivem vidas comuns nas sombras dos grandes empreendimentos que sustentam a vida moderna no Chile. Na prática, há relativamente poucas imagens do povoado (algumas que mostram uma rádio, outras uma senhora numa espécie de pequena loja de conveniência). O filme se concentra bastante na trajetória do menino pelos bosques e florestas, e na representação dos signos associados à indústria elétrica presente na região. 

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          No entanto, este assunto não se desenvolve em um conflito propriamente. Ele se reitera, repete os signos. E à partir daí, o filme parece abandonar o seu esforço de firmar um olhar social e político da situação; talvez porque, na prática, não exista material mesmo que leve adiante o embate entre a população e a fábrica, num processo dialético de desenvolvimento. Resta a pacatez e um certo estado de danação àquele lugar. Mais para a sua metade final, o longa-metragem de Reyes e Merino parece quase se desdobrar num outro filme, menos antropológico e observativo, e mais calcado na experimentação do tecido das imagens, dos efeitos de sombra, luz e movimento e dos ruídos da energia elétrica acoplados à ambientação das trilhas. Enquanto, esta sua vocação parece estar sempre um pouco latente (e daí que o longa-metragem parece desde o início se filiar um pouco ao trabalho de Sniadecki, Casting-Taylor, Paravel e cia. no Sensory Etnography Lab), é só nos momentos finais que A la Sombra de la Luz a leva a alguma consequência, dando-nas a ostensiva sensação que fez isto para suprir a outra linha de força que não funcionou plenamente. Em outras palavras, como o problema da torre de eletricidade não vai bem enquanto drama, a saída é produzir a sensação de um purgatório sufocante através dos efeitos visuais e sonoros.

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          Só que esta guinada formalista assumida daí em diante - que é onde em realidade o filme vinga melhor, pois consegue atingir momentos de verdadeira força visual - é também um pouco insuficiente. Os enquadramentos planimétricos das torres, a aposta nos emaranhados das linhas de energia e o movimento das luzes que geram alternâncias entre penumbra e luz são até de algum fascínio visual, mas estão bem longe de nos sufocar. Parecem produto de uma certa euforia vertoviana com as possibilidade do olhar, mas não geram um tão acentuado contraste com a natureza ao seu redor. E principalmente, não conseguem nos fornecer a exata medida emocional da penitência que a imponente presença da indústria de força elétrica representa para a vida daqueles moradores. Assim, o problema não é apenas que os dois filmes que coexistem em A la Sombra de la Luz anulem um ao outro. E sim, principalmente, que nenhum deles consegue levar às últimas consequências suas investigações e produzir o fascínio que o seu tema, de um modo ou de outro, poderia nos gerar. Resta um filme interessante e que até suscita algum interesse do espectador, mas que fica inócuo por não conseguir desdobrá-lo em algo mais profundo. 

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         Já Diógenes está entre os poucos filmes da edição que assume frontalmente a postura ficcional, embora os signos que constrói passam por um diálogo seminal com Sarhua, na região montanhosa do Chile. O indígena andino que dá alcunha ao título (Jorge Pomacanchari) vive isolado da sua própria comunidade, em uma casa na montanha onde cria os seus dois filhos, Sabina (Gisela Yupa) e Santiago (Cleber Yupa). Durante uma longa parte do longa-metragem de estréia de Leonardo Barbuy, assistimos a rotina cheia de enfado dos três, preparando comida, observando as montanhas, brincando, e as idas do pai ao vilarejo mais perto para vender o artesanato que parece sustentar as poucas necessidades do trio. Até que um dia, o pai morre subitamente. A menina, um pouco mais velha que o irmão, desce para o vilarejo afim de tentar vender as suas últimas tábuas. Neste momento é-nos revelado através de vestígios pouco congruentes a razão da condição dos três: no passado, para-militares armados que rondam a região dos Andes e fazem refém as populações indígenas locais teriam assassinado a mãe deles, e o pai fugiu para as montanhas levando-nos. As razões mais íntimas da ocasião ficam um tanto nebulosas, mas dá-se a entender que o que está em pauta é a violência do estado contra os povos andinos.

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            O que poderia ser um filme de denúncia ou que explorasse a mais-valia desta situação de opressão - o que não é pouco habitual no cinema de militância hoje em dia - constrói-se no entanto, de uma forma totalmente diferente. Diógenes ambienta-se praticamente todo na casinha na montanha, no isolamento que ele transforma numa espécie de purgatório onde se vive a rotina de sísifo, mergulhado num tempo cíclico que é um tipo de limbo e espera pela morte. O tempo modorrento, impresso pela maneira como a câmera se porta nos lentos movimentos de câmera que parecem saídos de um filme de Bela Tarr, desnuda esta série de ações repetitivas do cotidiano assomadas aos signos mais prosaicos da vida andina, os objetos domésticos, etc. O preto-e-branco e o enorme esmero formal de Diógenes, suas imagens  hipnotizantes e caravaggiescas, contribuem para a sensação de tormento, angústia e aprisionamento dos personagens, de nós e da própria arte ao tempo presente. A sutileza do chiaro-escuro faz a iconografia daquele tipo de vida e de seus objetos, filtrados por um olhar onírico, ao mesmo tempo em que a sua lentidão impávida faz todos aqueles movimentos de câmera nos transmitirem uma enorme sensação de imobilidade. A menina parece querer sair dali, mas o pai não deixa. Eles foram obrigados a viver no purgatório. E é por isto que é necessário todo este esmero no retrato da paralisia e condenação: para que depois, quando descobrimos um pouco das suas causas, o efeito político seja bem maior.

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           Este tipo de abordagem da vida indígena em qualquer lugar da América Latina é excepcional e inusitado, quando estamos mais habituados ao olhar antropológico e à exploração de um tempo fluido, repleto de possibilidades, nada rugoso como é aqui - algo que virou até um certo clichê do cinema independente que se relaciona com estes temas. O que faz de Diógenes uma bela obra é sua capacidade de apostar num caminho estético bem particular e próprio, e produzir imagens de um grande esmero, utilizando a iconografia simbólica de um modo de vida pouco retratado, quão mais somatizado desta maneira. Esta escolha radical que Barbuy leva às últimas consequências, sua invocação de uma tristeza vivida pelos andinos, obrigados pelo Estado e suas forças militares, a habitar um limbo contra a própria vontade, é o que nos ganha. Ela faz da experiência estética o caminho para um cunho político de suma importância.

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Setembro, 2023

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