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Dia 2: A Construção do Vazio

Moto (Gastón Sahajdacny, Argentina, 2022)

Llamadas Desde Moscú (Dir.: Luis Alejandro Yero, Cuba/Alemanha/Noruega, 2023)

por Pedro Henrique Ferreira

          O segundo dia da competitiva trouxe às telas dois longas-metragens que firmam o seu discurso sobre o senso de identidade de seus personagens à partir da relação que eles estabelecem com o espaço físico que os ronda. Ambos tratam de topologias diametralmente opostas - Llamadas Desde Moscú acontece entre as quatro paredes de um apartamento em Moscou, enquanto Moto desdobra-se no espaço público aberto e central de Córdoba; o ulterior delimita o infinito do mundo através de leis e proibições, enquanto o primeiro expande a espacialidade de um lugar constrito através de uma série de artifícios. Mas ambos fazem uma série de operações de construção geográfica até certa medida ‘mão pesada’ para dobrar o campo visual aos desejos, anseios e medos de seus protagonistas, num rigoroso exercício de manipulação do espaço cênico que tende (em ambos os filmes) a enfatizar o vazio do mundo. Isto de tal forma que uma idéia de ‘comunidade' latino-americana aparece neles como uma espécie de abstração, seja porque o retrato que fazem dos seus países sejam de lugares picotados por classes sociais e identitárias, seja porque as afinidades que seus personagens descobrem é muito mais sensível e afetiva do que geográfica.

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          Esta recusa à localização espacial como o vetor de identidade parece ser o que mobiliza Llamadas Desde Moscú. Rodado em um apartamento na capital russa nos dias que antecedem a invasão à Ucrânia, quatro imigrantes queer habitam este ‘lar' à espera da possibilidade de retorno. O longa-metragem detém o olhar sobre suas práticas cotidianas e à maneira como vivem, os diversos vídeos e rede sociais que assistem no celular prostrados na cama e os que produzem imitando cantoras pops, o trabalho à distância e outros momentos de quietude. A Rússia fria, vazia e inóspita do ambiente exterior, na prática, não é tão diferente da aridez interna do imóvel. Yero compõe os espaços do apartamento através de uma série de tableauxs, de forma a tornar as bordas dos enquadramentos molduras fechadas e dar autonomia a cada imagem para que elas não pareçam produzir um único lugar comum, uma geografia espacial onde um corredor leva a um quarto ou outro, etc. Além disto, a regra de dramaturgia é que os quatro atores nunca se encontrem no mesmo ambiente (aliás, ninguém, no longa-metragem inteiro, se encontra fisicamente com ninguém). Todas as interações do filme são mediadas por celulares e computadores, de forma que Llamadas Desde Moscú investe num mundo onde todas as esferas de relação humana - de trabalho, lazer, amizades, familiares - são mediadas pela tecnologia e legíveis apenas em materialidades porosas. 

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          Este aspecto particular que molda a construção de identidade de suas figuras não é produtor de uma poesia do desenraizamento ou da solidão. Embora o filme se recuse, por princípio, ao calor humano, ele jamais reduz o isolamento de seus personagens ao sentimento de angústia e vazio; é algo que foi normalizado nos seus estilos de vida e faz parte do intermédio deles com o mundo, a base mesma daquilo que são e onde descobrem a sua 'comunidade'. Enquanto O Buraco (Tsai Ming-Liang) fazia seus personagens trancafiarem-se em quartos para sondar suas solidões e vazios, e depois construir um acidente casual para aproximá-los, o filme aqui não pensa o contato visual e físico, a co-presença, como o elemento fundamental de relação. E sim em comunidades de fronteiras porosas, fundadas em anseios, práticas, sensibilidades e desejos transnacionais que florescem à partir da célula individual. Resgatando a intermediação secular entre Rússia e Cuba (durante muito tempo o único destino de migração possível para a população da ilha), o longa-metragem de estréia de Luis Alejandro Yero nos mostra que, mesmo quando é interrompida a possibilidade de um acelerado trânsito diaspórico no mundo moderno, cada vez menos ‘lares' formam-se à partir de barreiras geográficas. Muitas vezes, nascem de práticas identitárias, como a da cultura queer à qual acena no filme, mais que pelas fronteiras nacionais, continentais ou ideológicas.

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       O curioso é que muito da graça de Llamadas Desde Moscú está justamente no seu esforço performático de dramaturgia e composição, nos elementos gráficos dos tableaus; em suma, naquilo que observamos no espaço físico do próprio apartamento - as cenas de dança, a rotina de trabalho, etc. Mas eles estão mais presentes no filme como arroubos que como regra. No todo, as apostas do longa-metragem na imobilidade do quadro e de seus agentes, no tempo arrastado, na recorrência/repetição das mesmas situações, etc., se não acabam exatamente por conduzir o filme a uma artificialidade um tanto arbitrária, elas parecem muito esquemáticas. Deixam a sensação que ele apenas repete uma série de diapasões formais reconhecíveis em obras que tratam do mesmo assunto (isolamento, solidão, a ausência de identidade possível em um mundo flúido) no universo do cinema contemporâneo de festivais. O que acaba por ser um pouco um ferrolho, porque Llamadas Desde Moscú nem se desenvolve à partir deste recente estereótipo, nem o desmonta; não o critica e nem se esforça por elaborá-lo mais profundamente. Ela apenas faz seu panegírico. O maior risco em jogo é que esta espécie de ode à não-matéria termina por excluir mais frontalmente questões sociais, políticas e econômicas mais definidas, tornando-se um tanto obnubiladas ao espectador. Não é à toa que, diante de tantas cenas de cotidiano, pouco vemos eles se alimentar (nem o quê, nem o como) e fazer necessidades básicas, e que a única referência ao capital que faz é no trabalho de vendas de produtos de emagrecimento pela internet de uma empresa que parece um tanto falcatrua.

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          Através de uma série de recursos cinematográficos, Moto forja um espaço público esvaziado para dar a medida da experiência hostil que é vivida por aqueles jovens da periferia que ficam à margem de uma Córdoba segregada, produto de uma lei que permite a detenção policial arbitrária e racista. A trama documenta o dia-a-dia de Mariano (Mariano Cornejo) pelo centro da metrópole argentina, seus trajetos de motocicleta filmados por longos travellings, seu trabalho informal com os irmãos vendendo panos de cozinha e doces nos sinais, os protestos  de jovens contra a política discriminatória e pelo direito de ir-e-vir… e principalmente, seus encontros frequentes com Constanza (Constanza Gatica), uma jovem branca e burguesa, cuja pele contrasta com o tom mestiço do outro protagonista, mas que é por outro lado engajada nos embates políticos e sociais e que parece ser 'prafrentex'. O longa-metragem de estréia de Gastón Sahajdacny contrasta o vazio inócuo da cidade violenta para os motoqueiros (a melancólica sensação que, à qualquer momento, uma violência ali pode explodir), com o investimento em uma 'poesia do encontro' em tom menor, planos conjuntos banhados à luz amena do pôr-do-sol ou brincadeiras com crianças nas praças ao som dos trovões - uma mistura de tom lúdico e afetivo.

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          O problema seminal de Moto é que, embora esta estratégia de construção pareça latente, ela nunca acontece como efeito. A direção aposta, por um lado, na composição rigorosa e na distribuição levemente estatuária (ou na movimentação calculada) dos atores/agentes (p.e., um quadro que posiciona ambos numa conversa ao canto, e põe a viatura policial na linha de fuga, ou outro que os deixa de costas para a câmera para explorar o fundo da paisagem da cidade) em planos majoritariamente mais gerais; e por outro, na fluidez dos travellings que, embora não sejam propriamente belos, são meticulosamente organizados e previstos, ou nos raros arroubos de câmera trêmula (a manifestação por exemplo) que nem por isto emanam qualquer senso de urgência. Mas o filme nunca consegue escapar ao próprio artificialismo dos seus métodos, principalmente porque tudo é feito de maneira comedida, sem extrapolar ou exagerar - o que era precisamente a beleza do trabalho de diretores modernos que investiram na poética do vazio da metrópole através de uma semelhante lógica formal. Por outro lado, a dramaturgia não produz a fagulha de afeto, a sensação de intimidade e vida que pudesse nos ajudar a romper com a anodinia de uma Córdoba controlada. Não é à toa que seus melhores momentos são aqueles que parecem mais espontâneos e leves, como quando, à espera do sinal fechar, dois irmãos pregam uma brincadeira no outro - são eles que nos faz romper o véu do racismo e da segregação. 

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          Na realidade, Moto é um pouco incapaz de traduzir em imagens o pavor, a raiva, a melancolia, a violência e a dor da situação de vida que retrata, tanto quanto o idílio, a beleza e o amor prosaico daqueles que padecem dela e redescobrem o mundo real nos encontros proibidos. Resta um tom agridoce e uma série de intenções que não passam ao ato, o coito interrompido do que poderia vir a ser realmente um grande filme caso ele levasse às últimas consequências os seus rumos e não ficasse sempre no meio-termo conciliatório. Creio que isto não acontece porque Moto não radicaliza os seus gestos e, no mais das vezes, assume uma política do pacifismo que é sempre ma non troppo. Uma que vê o caminho de superação na utopia de um diálogo afetivo de classes, e que às vezes beira um pouco a postura de uma esquerda-centrista. O casal interracial não se toca fisicamente porque o amor não é libidinal, está no coração. Quando o motoqueiro é parado pela polícia (o momento da ‘abjeção’), a câmera foge do assunto para mostrar as luzes cintilantes na parede (o gesto que Truffaut condenava em Autent-Lara). E não à toa, a manifestação que filma não descamba em revolta, torna-se, através de um porta-voz que fala no megafone, a auto-defesa e justificativa para a mídia hegemônica de uma passeata pacífica. 

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Setembro, 2023

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