Acerca de
Dia 1: Silêncios e Enterros Ditatoriais
Guapo’Y (Dir.: Sofia Paola Thorne / Paraguai, Argentina e Qatar, 2023)
Otro Sol (Dir.: Francisco Rodríguez Teare / Chile, França e Bélgica, 2023)
por Pedro Henrique Ferreira
A abertura da Mostra Competitiva ‘Territórios’ na 17ª Mostra CineBH parece nos confrontar com a realidade de que qualquer imagem política mais ampla que se faça da América Latina, hoje em dia, passa inexoravelmente pelo fato de que toda ela sofreu com ditaduras linha-dura, mais ou menos violentas, mais ou menos demoradas, na segunda metade do século XX. Mais significativo ainda é o fato de que estas ditaduras, que foram instauradas à base da força econômica norte-americana em praticamente todo o continente, não tiveram todos os seus meandros revelados e debatidos. Em relação a elas, não houve ainda o nosso tal vergangenheitsbewältigung. Muito do que os exércitos destes países fizeram permanece na obscuridade, seus arquivos fechados e os relatos das vítimas silenciados ou descreditados; não raro, também, que alguns dos agentes políticos do presente tenham alguma espécie de conexão com os torturadores do passado, e que algumas das estruturas sociais do momento ainda existam. Em chaves bem antípodas, tanto Guapo’Y quanto Otro Sol parecem se esforçar pela busca de uma poética para lidar com o passado traumático e silenciado, mas que deixa marcas ferrenhas sobre os corpos daqueles que padeceram dela.
Esta dedicação em trazer à tona os traços físicos da violência, enxergando isto como uma forma de ‘cura’ coletiva/nacional, está presente desde a imagem inicial do documental Guapo’Y: uma mulher cobre de raízes medicinais a nudez das costas violentadas. O longa-metragem de estréia de Sofia Paola Thorne centra-se em torno de Celsa, uma guerrilheira que, durante o longo governo ditatorial de Stroessner que durou no Paraguai entre 58 e 89, passou uma significativa parte de sua vida encarcerada num presídio. O dispositivo do documentário parte da restrição espacial à morada desta senhora, numa casebre em meio a uma região rural mais afastada, em torno de uma espécie de bosque em meio à natureza que contrasta radicalmente com o mundo oficial e citadino do Paraguai progressista. A câmera de Thorne alterna majoritariamente entre dois registros: primeiro, as imagens dos seus afazeres cotidianos e domésticos, dedicando boa parte do seu tempo às ações manuais dela no cultivo, colheita e preparação de ervas medicinais; depois, entrevistas e falas mais despojadas (às vezes não está sozinha, e sim com amigas/ familiares) onde a voz canhestra da protagonista rememora os muitos episódios de seus tempos de prisioneira. Ambos articulam-se num olhar que não é tão prosaico e espontâneo quanto melancólico e devastador, simbolizando as sequelas deixadas pelo regime no corpo de quem foi sua vítima. Por outro lado, se a voz dela revela um Paraguai da amnésia, que varreu seus crimes para debaixo do tapete, as imagens de cura parecem metaforizar um elixir que o armazenamento do registro oral de Celsa, tanto quanto a remissão que a medicina tradicional faz à cultura guarani, poderiam representar para o país.
Neste sentido, Guapo’Y opera através da aparição de alguns signos ambivalentes. As histórias do passado da protagonista - o violento assassinato de seu marido e a tortura física e mental dos prisioneiros que são assomadas por lembranças mais brandas, do nascimento de sua filha ou dos encontros comunitário entorno da árvore que dá título à obra - são às vezes invadidas por vozes do presente no off das rádios e TVs, onde ministros e outros membros do governo atual relativizam os feitos horrendos de Stroessner. Além disto, a ausência de correlativos imagéticos que ilustrem os relatos orais de Celsa e sua companheira de guerrilha são potentes na medida em que contribuem para um discurso sobre a falta de materialidade e provas concretas, o apagamento de um patrimônio memorial que parece ser o tópico central do longa-metragem. Restam cartas, uma fita clandestina gravada pelos guerrilheiros no presídio, e outros escassos recursos que chamam mais atenção pelo vazio que pela presença. É como se este testemunho não passasse de um grande hiato para a trajetória da nação. O ponto-de-vista do Paraguaia oficial não é tão diferente daquilo que nos mostra o último plano do filme: a ausência da Guapo’Y no presídio atual, a enorme árvore que ali ficava e em torno de onde os guerrilheiros reuniam-se e que agora foi arrancada de lá.
O que enfraquece um pouco Guapo’Y é o seu ensejo um tanto pronto de enfatizar o trauma à luz de um aspecto sofrido e melancólico, que faz parecer um pouco como que se o documentário fosse um bocado armado para isto; até mesmo onde ele vislumbra outras coisas ali latentes e deixa elas passar sem lhes fornecer muita latitude (a amizade na experiência de resistência, o carinho trocado nesta comunidade, tudo de vivo que ali persiste hoje e ontem apesar do trauma). Neste sentido, mesmo as metáforas do remédio e da natureza ritualística tornam-se fechadas nos seus sentidos, reiteradas com tanta ênfase, que beiram a literalidade e ficam cansativas, e em dados momentos, os relatos de Celsa soam um tanto condicionados a uma tese que o filme já possui de antemão, ecoados junto a uma trilha sombria e onipresente. Mas mesmo esta fraqueza não chega a fazer desmoronar a nossa fruição. O que dá força a Guapo’Y são os comoventes relatos e a dignidade física tocante de sua protagonista que a câmera de Sofia Paola Thorne consegue muito bem extrair, a fala vacilante de Celsa e tudo que ali parece nos prometer um Paraguai mais guarani e menos espanhol, uma América Latina mais indígena que européia.
O caminho percorrido por Otro Sol é bem diferente. Por princípio, ele esconde da trama a relação que firma com o apagamento da memória ditatorial e das relações coloniais implícitas na escolha de seu objeto: Alberto Cándia, um saqueador chileno que teria efetuado um roubo das peças decorativas de ouro na Catedral de Cádiz, na Andaluzia. Ao tratar deste lanza internacional, ele mobiliza três mitologias opressoras (ou melhor, escava histórias, como metaforiza o filme) que se atravessam: a da ditadura de Pinochet que, ao tentar impôr controle e estabelecer o monopólio sobre o tráfico de cocaína do Chile, institucionalizou a prática de torturar ladrões comuns e produziu uma grande imigração de fugitivos; alguns destes, como Alberto Cándia, tornariam-se mundialmente conhecidos na arte do furto por causa da execução de roubos de grande escala (qual o da Catedral de Cádiz) o que contribuiu para a lenda de que os chilenos são os melhores ladrões do mundo; por fim, ao roubar o ouro de uma Igreja espanhola que foi construída no século XVIII e que é fruto bem direto da exploração colonial, Alberto age à revelia como uma espécie de 'Robin Hood' anticolonial, trazendo para enterrar nas terras originárias aquilo que lhe foi roubado pelos conquistadores imperialistas. Só que, se estas coisas estão deveras implícitas na eleição do seu objeto, ficam apenas como fundo cego do filme, como o seu otro, 'negativo especulativo do real'. Nenhum destes assuntos vem propriamente à luz.
O dispositivo de Otro Sol parte dos arquivos judiciais que envolve Alberto Cándia e o roubo à Catedral, ocorrido em 1978, e orienta a narrativa à partir deles. Só que a dramaturgia do longa-metragem de estréia de Fransico Rodríguez Teare, mais reconhecido no âmbito das artes visuais que no cinema, não ‘reencena' apenas o crime no tempo presente do Deserto do Atacama através de atores e não-atores (a tática de mise-en-scéne de Straub/Huillet, Albert Serra, e tantos outros); os jovens vestidos com trajes da moda atual fingindo serem ladrões da década de 1970s, com o devido desacato histórico. Ela mistura o achado da memória com os relatos e estórias documentais de outros ex-fugitivos que ainda habitam as ruínas, praias e deserto - suas vidas e seus crimes reais ou inventados (nós nunca saberemos e isso pouco importa) - numa dinâmica polifônica tão profunda e centrífuga que o que resulta é um labirinto surrealista e canhestro, onde o melhor é não tentar se orientar pela linha de fuga mais próxima ao passo seguinte da trama, e sim pegar carona neste vai-e-vêm de profunda invenção. Neste sentido, Otro Sol não é um documentário ficcional, ou um filme que borra as barreiras entre o real e o inventado. Ele simplesmente não o poderia ser, porque nunca reconheceu as fronteiras entre nada disto como mais que uma miragem.
Na medida em que tudo ali se torna artifício de invenção, um retábulo de coexistências formais possíveis ou um palco para a criatividade da cena, este real documentado, o passado tanto dos arquivos judiciais quanto os relatos ouvidos que se amontoam, não passam de fonte de inspiração. A brincadeira é reinventar com alguns jovens e velhos aprisionados em meio ao deserto a mitologia de um Chile pecaminoso e fugitivo, uma América Latina reconhecida pelo signo atávico e bruto que é desdobrada pela violência colonial e ditatorial. Isto tudo sem nenhum formalismo ou tom barroco, e sim através de uma câmera trêmula a sondar a imponência do deserto, das praias imaculadas e das tempestades ruidosas por trás dos montes, ou das ruínas abandonadas que se tornaram o habitat improvisado e terceiro-mundista dos quarenta ladrões que pouco sabem o que ali fazem, às vezes lembrando toda a topologia dos filmes de Eduardo Williams. Nenhuma seriedade, e sim um ar de irreverência e juventude, a procura por um reiterado frescor da construção imagética e da performance onde os atores o tempo todo descorporificam ou reencarnam personagens diferentes de acordo com as necessidades dramatúrgicas do momento. Um método de insolente profanação que beira a galhofa onde o grande crime histórico pode facilmente se tornar dois jovens correndo com uma mala dobrável e parando pra brincar de abençoar antes de meter o pé. É um filme onde parte-se do nada para que tudo se assome aos poucos, em todas as direções possíveis que se abrem.
Quem for atrás de uma trama e abordagem mais convencional e séria do objeto documental não vai achar aquilo tudo mais que uma grande confusão desvariada. Um olhar mais monolítico corre o risco de não perceber a potência política que subjaz Otro Sol e faz dele um ótimo filme, seu ar anárquico e ode ao marginal, a homenagem desajeitada prestada a uma América Latina que talvez sem querer é revolucionária e tenta reencontrar seu próprio ouro roubado, escamotear o colonizador sendo mesmo o restolho do mundo e talvez (mas só talvez) matando-se antes de cumprir sua tarefa histórica.
Setembro, 2023