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Cortinas, vigas e flores

O Canto das Amapolas (Paula Gaitán, 2023, Brasil)

por Luiza Lima Furtado

          Por uma oscilação policromática das sequências, que possuem entre si um ritmo quase bailado, são entrelaçadas as emoções de uma extensa relação entre filha-mãe/ Gaitán-Dina ao longo de O Canto das Amapolas. Emoções que se alteram conforme o segmento, mas mantêm um resíduo que está sempre a refugiar-se nas fissuras de cada unidade alegórica. Tal método torna viável o despertar de uma familiaridade com as protagonistas, como se estivéssemos todos sentados próximos a elas. 

        Podemos nos perguntar: "a quem destinam-se estes diálogos?”. A todos, possivelmente. Atravessam imaginários particulares e desembocam na informalidade coletiva. Tal processo poderia muito bem ser visto, parafraseando Peter Sloterdijk, como uma porta abrindo-se para mil desertos de vivências, vazios e glaciais. O representar aqui se legitima como uma busca pela substancialidade da relação, desde sua característica mais simples até seus múltiplos compostos.

           A conversa das duas é ouvida pelos fundos, ilustrada por planos que mapeiam os objetos da casa, tal como a bengala estática em seu canto — seria ela utilizada? Ou já cumpriu sua função e hoje não possui mais que um papel decorativo? — e a brisa que escorre de leve pela janela da sala. Uma prosa que se coloca como: “Eu sou aquilo que ocorre quando você não está olhando diretamente, aquilo que se efetua na sua plenitude quando a câmera não tenta se impor hostilmente em meu rosto”. À convicção disso: em nenhum momento seus rostos são revelados, são as palavras ditas que alargam o espaço do saudosismo e da indagação. 

          Quanto mais exercida a comunicação, maior a digressão imagética. Algo como um diálogo processual com desentendimento e solução (e as imagens surgindo como parênteses das narrações). Por este princípio fluido, é percebida uma gradual mudança no ritmo soturno que transcorre durante a abertura do filme. Mãe e filha começam a ler cartas passadas, que relatam os horrores da guerra e as fatalidades implementadas (//o futuro está acabado e as crianças choram//), e encontram-se uma à outra na dor. Então, pela retaguarda (e paulatinamente), nos é confeccionado um novo espaço, preenchido pelo mar vermelho das amapolas. Elas eclodem com o arrebatamento de uma reminiscência: percorrendo prazerosamente os campos, vislumbramos uma mulher que parece ter sido a memória de alguma das duas. A figura descansa ao relento de uma natureza opulenta, alcançando uma harmonia que tanto se procura, e ocasionalmente se encontra. 

        A ornamentação é, por vezes, a semântica vital, que recai sobre o caráter intrínseco das relações de intimidade: busca-se adornar, constantemente, ou a relação cai em flagelação.  Sem o floreio da singularidade não pode existir compostos suficientes para formar uma relação ou mesmo um filme. Por esse lado, O Canto das Amapolas é uma vivência de encontros e desencontros sem regras de começo-meio-fim. Como questiona o pesquisador Laurent Desbois ao escrever sobre cinema no Brasil: “Seria essa inversão justaposta da escala de tempo uma das chaves para o mistério sul-americano em geral, e para o enigma brasileiro em particular?”.

         Tal como a mônada espiritual leibniziana (Gaitán cita o filósofo por uma breve circunstância), vale dizer que as escolhas empregadas no longa produzem (1) uma autoconsciência sobre a afeição; e (2) um princípio de espelhamento que detém em sua abstração a capacidade de comunhão com infinitos predicados. 

Abril, 2023

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