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Acerca de

De olho nos céus

Batem à Porta (M. Night Shyamalan, 2023, EUA)

por Marcelo Miranda

        “Estamos aqui para evitar o apocalipse”: em termos superficiais, a frase de Leonard (Dave Bautista) é a culminância da tensão instalada desde os primeiros instantes de Batem à Porta, mas ela é principalmente o ponto central das reflexões propostas por M. Night Shymalan filme a filme, especialmente desde O Sexto Sentido (1999), ainda hoje seu trabalho mais conhecido. Trata-se de um cineasta da espiritualidade e da fé. Que não se entenda isso como algo necessariamente relacionado a religião. Os dois aspectos são bem mais profundos e sofisticados que algum sistema de crenças institucionalizado. Por suas raízes indianas, Shyamalan leva para dentro de Hollywood uma série de mecanismos de questionamento sobre espiritualidade e fé que, ao fim, servem para reafirmar ambas as coisas como movedoras do estar no mundo. Se tem algo que o cinema de Shyamalan não é, e isso às vezes surpreende a quem insiste em olhá-lo com uma visão restrita ou preconceituosa, é ser ambíguo. Mesmo no seu projeto mais radical, Fim dos Tempos (2008), em que a ausência de respostas é quase uma definição estética, ninguém duvida de que um fenômeno global esteja em andamento. Inexiste a ambiguidade; os fatos dados pelo filme são concretos.

        Quando Leonard, então, revela estar ali com seus companheiros de visões cósmicas para impedir o fim do mundo, Batem à Porta se afasta da seara do “filme de invasão doméstica” a qual ele se vinculara até então, ou mesmo de um suspense mais tradicional como poderia aparentar, para se imiscuir num cenário de incertezas sobre aquilo que se vê. Não se trata de um assalto, de vingança, de fuga, de fetiche, como toda uma tradição de “filmes de invasão doméstica” (ou “home invasion”) acostumou o público interessado nessas narrativas. A motivação do quarteto mostrado surge de suas condições de supostos oráculos a quem foi dada a graça (ou a desgraça) de enxergar como o planeta vai se extinguir. Cabe aos demais personagens – o casal Andrew (Ben Aldridge) e Eric (Jonathan Groff), juntos com a garotinha Wen (Kristen Cui) – acreditar ou não, sendo que, caso acreditem, precisarão cumprir a profecia de matar uns aos outros para evitar o mal maior.

        A tragédia em Batem à Porta, portanto, é da ordem da crença no espiritual. Se Leonard e os acólitos falam a verdade, isso vai significar a existência de forças maiores a regerem a Terra e sobre as quais o ser humano talvez não tenha controle como muitas vezes acredita ter. “Talvez isso aconteça de tempos em tempos”, diz um dos rapazes num momento de desespero, como se a aceitar a própria condição de sacrificado e, assim, abraçar uma fé que ele mal sabia ter em si. O filme trata dessas questões de maneira frontal e direta, totalmente conectada aos personagens e usando a televisão (tal como o rádio em Sinais, outro Shyamalan, lançado em 2002) como meio de ampliar a quantidade de informações. Mas a TV é um meio de mediação, não é suficiente para “provar” a existência concreta das coisas, algo tratado pelo cineasta de maneira bastante sofisticada em Vidro (2019). É preciso materialidade e especialmente uma cosmovisão que talvez só faça sentido no instante em que se veja, de fato, aquilo sobre o que o outro, e apenas ele, até então acreditava. No drama apresentado por Batem à Porta, o casal faz as vezes de descrentes, questiona a veracidade do grupo invasor, sofre violências por se opor à ação coordenada, mas, a certa altura, começa a sentir que algo pode estar de fato acontecendo dentro daquilo que lhe é apresentado. Andrew é mais cético, Eric tem alguma propensão à fé, e somente quando as crenças de ambos enfim se encontram num ponto de equilíbrio entre um e outro é que se alcança a espiritualidade para finalmente a profecia se concretizar.

        É tudo muito mais reflexivo e impuro do que parte da crítica apontou sobre o filme, ao querer colocar nesses desdobramentos questões sociais, sexuais e mesmo religiosas que não estão, efetivamente, inseridas nas provocações de Shyamalan. O que Batem à Porta tem de realmente perturbador é o confronto com a derrocada da descrença, é surpreender com a efetiva materialidade do que falavam os antagonistas, é criar a nódoa sobre o que seria “o certo” a fazer num mundo contemporâneo em que os limites entre certo e errado parecem cada vez mais em questão, para mal e para bem. Não há discurso, nem indução, nem tapeação em Batem à Porta. O filme convida a todos para entrarem na própria armadilha que criou porque acredita nela e (ao menos utopicamente) crê na possibilidade do espectador se relacionar com o drama para além das superfícies. A partir do momento em que coloca em xeque as crenças de seu público, o filme fecha seu ciclo, pois mantém a coesão de estar sempre junto de seus personagens centrais.

        Nesse sentido é bastante significativa a alteração feita no roteiro de Batem à Porta em relação ao romance que o originou, O Chalé no Fim do Mundo, de Paul Tremblay. No livro, a ambiguidade permanece e, ao leitor, não é dada nenhuma resposta sobre a natureza dos acontecimentos que levaram Leonard e companhia até a família. Haverá apocalipse ou não? O sacrifício é necessário ou não? A cosmovisão, nesse caso, parece um tanto limitada, pois não permite aos personagens realmente se compreenderem dentro da situação na qual eles foram colocados à força (e a morte da garotinha, original no livro e inexistente no filme, sequestra o impacto da narrativa literária, retirando a motivação central para criar um drama extra). Ao ir para o cinema, a história de Tremblay foi modificada em seu terço final e encontra novas possibilidades, inclusive mais condizentes com o tipo de encaminhamento que mais interessa a Shyamalan. Ao expor o apocalipse como acontecimento factual, literalmente testemunhado pelos personagens ao olharem para cima e verem aviões despencando, o filme nos exige uma postura intelectualmente ativa. Não há tempo nem espaço para o choque puro e simples, nem para dúvidas; tudo que resta é a ação.

        No desfecho, os personagens ainda sobreviventes se deparam com suas cosmovisões (a partida de Leonard, reconhecendo a própria finitude, não se difere tanto da escolha derradeira de Eric instantes depois) para, salvo o mundo, poderem catar os escombros afetivos. Ironicamente, Batem à Porta termina numa nota otimista, de olhar para adiante, de salvação, justamente porque o monstro da espiritualidade ganhou forma e foi encarado. Quem garante quando virá o próximo?

 

Abril, 2023

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