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Um Filme de Consenso

Argentina, 1985 (Santiago Mitre, 2022, Argentina)

por Filipe Furtado

        Argentina, 1985 é um filme catártico de sucesso inegável. Entre qualidades e defeitos, é habilidoso em transformar a importância do seu tema e não restam dúvidas de que se trata de um filme de tema que sabe muito bem que ele importa pelo que diz, em fonte motriz de drama. Quando no seu clímax Ricardo Darín (como sempre o rosto oficial da tradição de qualidade argentina) grita “nunca más” no meio de discurso oficial retratado pela câmera com pompa, cortes para uma plateia que aprova tanto quanto a que o assiste e música grandiloquente não restam dúvidas que Argentina, 1985 é um filme tão eficaz quanto familiar. Um bom produto com história importante pronto para agradar uma plateia de esquerda a qual ele é urgente e relevante.

       

        Trata-se sem dúvidas de um filme destinado a ser superestimado por cinéfilos que gostam de concordar com os filmes que veem. Como afinal desgostar de um enredo sobre a importância de processar e mandar para cadeia milico torturador? Ainda mais aqui no Brasil, no qual o tema é tão doloroso e num cenário em que o filme foi lançado às vésperas das eleições de 2022 e principalmente por vir embalado em tal competência básica. Haverá, claro, a reação contrária, pois há também o cinéfilo para o qual o mesmo filme será decerto motivo de alergia, para qual um cinema de mensagem e boas intenções e orgulhosamente careta será por princípio suspeito sobretudo quando se concorda com ele. Não me parece de todo uma discussão das mais produtivas, apesar de ambas as partes terem ao menos um quinhão de razão, e de qualquer forma o que me parece mais interessante a respeito de Argentina, 1985 é intimamente ligado à sua posição de filme de consenso, para bem e para o mal.

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        O diretor Santiago Mitre não é alheio a nada disso. Seus três filmes anteriores, O Estudante (2011), Paulina (2015) e A Cordilheira (2017), são todos trabalhos sobre os meandros do discurso político que perseguem a forma mais convencional possível, uma forma muito peculiar e desigual de fazer cinema populista. Filmes políticos, pois, se apresentam como filmes sobre política e cujo interesse está concentrado na forma que se pretende versar sobre como o discurso ganha forma. São todos muito parecidos e mecânicos na exposição das suas platitudes. Neste aqui isso se dá sobretudo pela compreensão de que o julgamento da junta militar não é sobre justiça ou seus crimes, mas uma questão de imagem. Mitre e seus colaboradores compreenderam que o julgamento é um gesto midiático e que a política envolvida é toda simbólica. Uma questão de expor aqueles homens horríveis pelo que são, ou, como o personagem de Darín diz, “Videla é mais baixo do que parece”. Imagens são construídas o tempo todo, mas o aparato cinematográfico também pode ser usado de forma a revelá-las.

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        O valor maior de Argentina, 1985 me parece intimamente ligado a essa relação com imagens e sua posição de filme de consenso. Pois muito mais que um filme triunfalista, ele é quase um lamento acidental sobre si mesmo. O centro dramático não está no juiz justo de Darín, mas no assistente principal, vivido por Peter Lanzani, um tipo aristocrático de família conservadora ligada aos militares e cuja mãe “vai à mesma missa que Videla aos domingos”. O clímax emocional do filme não é o discurso triunfalista de Darin ou as sentenças, mas o momento igualmente triunfante no qual Lanzani recebe a ligação da mãe após um depoimento especialmente escabroso que confirma que ela também acha aqueles homens monstruosos. Uma vitória da imagem, mas sobretudo vitória de uma noção de que a evidência do abuso violento cometido pelos agentes do governo que trabalham sob o comando de Videla e sua junta deveria ser suficiente para alcançar, através de linhas ideológicas, consenso suficiente na democracia liberal da segunda metade do século XX para tratar esses crimes como imperdoáveis.

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        Eu cresci e tomei consciência política na primeira década da chamada Nova República, então a ideia da pessoa que votaria no PFL e ao mesmo tempo torceria o nariz à menção dos crimes da ditadura militar me era bastante familiar. Imagino que Mitre, cerca de um ano mais velho que eu, tem experiências bastante similares na Argentina. Seu filme é forte menos pela lição histórica do que por ser um filme da história, que está muito diretamente ligado àqueles anos.  De forma um tanto acidental, ele é um lamento, um desejo de retorno para quando aquele consenso era possível, para quando a ideia de que a violência de governo contra o seu cidadão seria inaceitável. É um filme dos últimos quinze anos do século XX feito em 2022 e completamente incapaz de resolver as próprias contradições. O populismo do filme tem força justamente por ser impossível, cabe a ele imaginar um mundo no qual faria sentido como a obra supra-ideológica que sonha ser. A fantasia de um consenso humanista que ruiu. É um paradoxo, um filme curioso justamente por ser filme velho. E tudo que tem de caduco lhe empresta uma inesperada força.

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            Abril, 2023

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