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Os charmes do filme bom o suficiente
Alerta Máximo (Jean-François Richet, 2023, EUA)
Na sua Casa ou na Minha? (Aline Brosh McKenna, 2023, EUA)
por Filipe Furtado
Um dos paradoxos da cinefilia contemporânea é como o desejo por um cinema populista é contradito pela relativa ausência do bom filme de gênero, ao menos no cinema hollywoodiano que, para bem e para o mal, segue ocupando a maioria dos espaços e por consequência discursos sobre o cinema popular. Pode-se notar isso na comoção entorno de RRR do S.S. Rajamouli, que quebrou as barreiras habituais do gueto do cinema popular indiano e foi amplamente fetichizado nos meios cinéfilos e transformado em centenas de clipes nas redes sociais. A isso ele se presta muito bem, na boa vontade para com os últimos Top Gun e Avatar ou, de um modo geral, com franquias cinematográficas com bom controle de qualidade e suficiente personalidade, como os Missão Impossível ou John Wick (nenhum julgamento aqui, que fique claro). É algo que se reflete muito num desejo por certo cinema de gênero mais voltado para suas próprias pequenas satisfações e prazeres, algo que costumava rotineiramente ocupar os espaços das salas de cinema entre filmes maiores e que já não fazem sentido na economia atual maximalista e predatória dos multiplexes. É certamente mais fácil olhar com simpatia para o filme popular que não parece sufocar todos os demais, e esses filmes despertam as memórias de outras tantas sessões entre filmes mais chamativos. Compreendo esse desejo muito bem, afinal eu passo horas todos os anos me mantendo em dia com os últimos filmes do Scott Adkins ou da Emma Roberts.
Isso leva ao que eu costumo chamar de "filme bom o suficiente". Não se trata de um julgamento de valor, não são necessariamente filmes medíocres, apesar de alguns o serem, mas de filmes que se ocupam antes de mais nada de um misto de familiaridade e profissionalismo. A maior qualidade do filme bom o suficiente é sua capacidade de transportar o espectador para uma sala de cinema popular do fim dos anos 90, começo dos anos 2000. O filme bom o suficiente é um exercício em nostalgia, e não a nostalgia por alguma era dourada perdida (o sistema dos estúdios, a Nova Hollywood, pouco importa), mas por uma forma de purgatório, de retornar no tempo o bastante para que alguns desenvolvimentos dos últimos 15 anos do cinema mais mainstream não existissem: o fim da projeção em película, o colapso do mercado de home video, o semi-monopólio da Disney etc. O mais perfeito filme bom o suficiente da última década é provavelmente o primeiro John Wick (2014), um veículo para bom trabalho de dublês, ação clara e criatividade de coreografia tão eficaz nos seus objetivos que é fácil esquecer suas origens humildes, já que cada uma das sequências parece custar o dobro que a anterior.
O começo do ano, em meio a muitos filmes aborrecidos da temporada de Oscar, costuma ser pródigo em filmes bons o suficiente, e em 2023 encontrei ao menos dois: Alerta Máximo, o último filme de ação com Gerard Butler, um dos últimos atores que conseguem encabeçar fitas do gênero de orçamento médio que passam em salas de cinema; e Na sua Casa ou na Minha?, última das tentativas trimestrais da Netflix de emplacar uma comédia romântica, dessa vez com Reese Whiterspoon e Ashton Kutcher, duas das maiores estrelas do último período mais popular do gênero. Destaco os protagonistas antes de seus respectivos cineastas porque uma das coisas pelos quais o filme bom o suficiente é o nostálgico e o star system funcional. Esses filmes majoritariamente são protagonizados por atores que já eram associados a seus gêneros 15-20 anos atrás.
Ambos são trabalhos de realizadores com longa experiência no gênero. Na sua Casa ou na Minha? é o primeiro filme dirigido por Aline Brosh McKenna, que, como roteirista, trabalha com comédias de forma intensiva desde os anos 2000, mais notoriamente no bastante popular O Diabo Veste Prada (2006), um dos últimos filmes do gênero a ser exibido sem parar nos canais de TV a cabo. Ela também cocriou a muito boa série de TV Crazy Ex-Girlfriend, prevista muito nas maneiras que as fantasias de comédia romântica são percebidas e afetam as suas plateias. Já Alerta Máximo é assinado por Jean-François Richet, cineasta que começou no filme de banlieue (subúrbio francês) dos anos 90 (Ma 6-T va crack-er é ótimo) e passou as últimas duas décadas tentando se encaixar numa forma mais industrial e acessível. Seus filmes franceses, geralmente protagonizados por Vincent Cassel, são grandes produções locais ostentando o que a indústria francesa pode oferecer (como a Paris napoleônica de estúdio de O Imperador de Paris, em 2018), enquanto seus ocasionais filmes em inglês, como o remake Assalto à 13a DP (2005) e Herança de Sangue (2016) tendem a ser mais grossos e rasteiros.
Há bastante de filme de estrangeiro em como eles encaram as amarras do material, numa disposição geral de enxergar um barbarismo nos americanos e suas formas narrativas favoritas. Há, por consequência, em ambos os filmes, um estudo bem consciente das suas próprias formas desgastadas, assim como bem-dispostos a seguirem os elementos mais conservadores inerentes às suas tradições, da comédia romântica pós-Nora Ephron num caso e do filme de ação moldado em Duro de Matar no outro. Na sua Casa ou na Minha? sofre um tanto da tendência da comédia romântica das últimas duas décadas de se apoiar no conceito esperto. No caso, Whiterspoon e Kutcher passam o filme todo em costas opostas dos EUA (a grande sacada do filme é eles trocarem de endereço) e, até o encontro do clímax, só conversam pelo telefone. É tirar algo dos prazeres de uma comédia romântica só ligar seus atores centrais pela montagem, e cada uma das metades do filme sofre de não conseguir imaginar nada muito além do imediato de cada personagem. Ambas as partes dependem de personagens não muito engraçados que existem exclusivamente para ouvir os protagonistas e avançarem os arcos dramáticos, sem muito esforço para além do casting para dar alguma distinção a eles. Por outro lado, o filme sabe usar este espaço imediato e explorar a ideia daquelas duas personagens neuróticas a se meter na vida que encontram uma da outra, o que oferece a ambos os atores um bom material para trabalhar.
Alerta Máximo também sofre de uma certa limitação de imaginação para um filme de ação. Suas sequências principais se destacam mais por súbitos momentos de violência do que por uma coreografia mais elaborada (como nos melhores exemplos de baixo orçamento no gênero). Tendemos a lembrar dele mais pela chave menor com que se desenvolve colocando uma presença física e táctil à frente da destruição em grande escala dominada pelo artificio do CGI. O filme se segura muito mais sobre química entre Butler e Mike Colter, o prisioneiro “perigoso” que o piloto transporta. O filme é esperto em permitir que Colter assuma o papel do homem de ação mais capaz, enquanto Butler se destaca mais pela determinação, e os dois bons atores sabem tirar muito da dinâmica estabelecida entre eles. Como estamos em 2023, existe uma subtrama entre autoridades exclusivamente para comentar (e vender a ação) que soa ainda mais irritante pelos limites do que o filme oferece na área.
A familiaridade em ambos os casos é bastante eficaz, se o que seja é uma aproximação de estar num multiplex do fim dos anos 90. Na sua Casa ou na Minha? e Alerta Máximo são cópias carbono mais que boas o suficiente. Os dois filmes provavelmente seriam melhores se fossem feitos em 1998 e rodados em película, sem sofrerem de alguns dos seus piores tiques contemporâneos - ou melhor dizendo, teriam seus tiques envelhecidos como algo distinto da época, como muitos dos filmes ligeiros nos quais eles se modelam. Melhores ou piores, provavelmente seriam menos distintos num contexto da época, pois seu charme como produtos de indústria depende muito desse desejo pela ideia, mais do que por vezes realidade, de um artesanato perdido.
Abril, 2023